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cinema

- Publicada em 11 de Novembro de 2020 às 21:18

Maya Da-Rin estreia longa premiado sobre cosmologia indígena e preconceito

'A febre' tem como protagonista vigilante do porto de Manaus e sua filha, Vanessa, técnica de Enfermagem

'A febre' tem como protagonista vigilante do porto de Manaus e sua filha, Vanessa, técnica de Enfermagem


VITRINE FILMES/DIVULGAÇÃO/JC
Cineasta e artista visual, Maya Da-Rin chega aos cinemas brasileiros - e também no streaming, nesta quinta-feira (12) - com seu premiado filme A febre, sua estreia em longas de ficção. Além do País, a produção será distribuída em salas na França, Reino Unido e China.
Cineasta e artista visual, Maya Da-Rin chega aos cinemas brasileiros - e também no streaming, nesta quinta-feira (12) - com seu premiado filme A febre, sua estreia em longas de ficção. Além do País, a produção será distribuída em salas na França, Reino Unido e China.
Ao longo de sua carreira em festivais, o filme recebeu mais de 30 prêmios, até o momento, e foi selecionado para ser exibido em mais de 60 eventos ao redor do mundo. Na sua estreia mundial, no Festival de Locarno, na Suíça, A febre levou três prêmios para casa: o Leopardo de Ouro de Melhor Ator (para Regis Myrupu), o prêmio da crítica internacional Fipresci e o prêmio Environment is Quality of Life. O título foi eleito ainda Melhor Filme em festivais na França, China, Argentina, Portugal, Estados Unidos, Uruguai, Chile, Peru, Alemanha e Espanha.
No Brasil, o filme conquistou cinco Candangos no 52º Festival de Brasília: Melhor Longa-Metragem, Melhor Direção, Melhor Ator, Melhor Som e Melhor Fotografia - além dos prêmio de Melhor Direção e Prêmio Especial do Júri no Festival do Rio e Melhor Filme e Melhor Som no Janela Internacional de Cinema do Recife.
A trama narra a história de Justino (Regis Myrupu), de 45 anos, um indígena do povo Desana que atua como vigilante no porto de cargas e mora na periferia de Manaus. Desde a morte da esposa, sua principal companhia é a filha Vanessa, que está de partida para estudar Medicina em Brasília. Com o passar dos dias, o protagonista é tomado por uma febre forte. Ele luta para se manter acordado no trabalho. Porém, sua rotina no porto é transformada com a chegada de um novo vigia. Nesse meio tempo, seu irmão vem de visita e Justino relembra a vida na aldeia, de onde partiu há mais de 20 anos.
A ideia para o argumento do longa surgiu a partir de dois documentários rodados pela cineasta na região sudoeste do Amazonas, na fronteira tríplice entre Peru, Colômbia e Brasil. "Faz tempo, foi em 2006. Na época, conheci algumas figuras indígenas que tinham deixado seus territórios tradicionais na floresta para virem viver na cidade. Acabei me aproximando de uma dessas famílias, e a relação que estabeleci com eles, a troca, as conversas que tivemos me trouxeram a vontade de fazer um filme de ficção", narra Maya.
O roteiro, que começou a ser escrito em 2013, é assinado por ela em parceria com Miguel Seabra Lopes, roteirista e realizador, e Pedro Cesarino, antropólogo, professor da USP e dramaturgo. "O roteiro continuou sendo escrito durante todo esse período de desenvolvimento e ensaios, teve diversos tratamentos. Houve colaboração os atores indígenas."
Foram cerca de cinco anos de um trabalho de pesquisa e de escrita do roteiro, paralelamente. "Eu começo sempre por um lugar, e escolhi ambientar o filme em Manaus. A partir daí, eu e um dos meus corroteiristas, Miguel Seabra Lopes, passamos temporadas de alguns meses na capital amazonense, definindo algumas locações."
Maya diz que eles passavam algumas semanas nas locações, convivendo com as pessoas e com aquele ambiente: "No porto de carga de Manaus, onde o longa é filmado, acompanhando a jornada dos trabalhadores do porto. Também tivemos algumas semanas no posto de saúde de Santa Etelvina, na periferia da cidade, acompanhando as jornadas das técnicas de Enfermagem, para a personagem da Vanessa".
Ainda estiveram em diferentes aldeias indígenas, de Manaus e dos arredores. "Nessas aldeias urbanas, conversamos com moradores, estivemos próximos das pessoas. Foi a partir dessa experiência, dessa vivência, desse contato, dessas trocas, que o roteiro foi sendo escrito."
A diretora explica que o casting também foi um processo longo: "Tivemos um ano de pesquisa de elenco – indígena e não indígena – com a contribuição de uma equipe de Manaus, de atores e realizadores manauaras que me ajudaram. Durante este momento, estive conversando com mais de 500 pessoas até encontrar Regis Myrupu (Justino) e Rosa Peixoto (Vanessa). Essas conversas também foram muito importantes para a compreensão e desenvolvimento do filme. Passamos uma semana com o Regis na casa dele fazendo uma leitura do roteiro. Nesse momento, fomos entendendo o que manteríamos ou o que gostaríamos de transformar. Trabalhamos as cenas e os diálogos, coisas foram cortadas e outras surgiram dessa conversa".
As filmagens, com cenas faladas em português e tucano, ocorreram em 2018. Segundo ela, a língua virou questão central para a obra. A realizadora detalha que "todos os atores vêm do Alto Rio Negro, mas são de povos exogâmicos, que casam entre si, que têm uma troca cultural muito forte, muitos elementos cosmológicos em comum, mas são de três etnias diferentes: Desana, Tariana e Tukano. O tucano se tornou uma língua franca na região".
Porém, o longa tem poucos diálogos; a câmera está sempre seguindo o protagonista. A narrativa é mais de exploração visual do que discursiva. E, no entanto, as questões trabalhista e de preconceitos étnicos vêm somar à produção em diálogos curtos e pontuais. As conversas com o colega vigilante (personagem Wanderlei, interpretado por Lourinelson Wladmir), na troca de turno, evidenciam discriminação. "O personagem é muito presente no nosso Brasil contemporâneo. De certa forma, esses sentimentos emergiram: racismo, preconceito, violência forte - que parece velada, mas é muito clara, para quem sofre, é direta, e, muitas vezes, acaba-se tendo que conviver com o inimigo, por circunstâncias sociais, necessidade de subsistência", explica Maya.
A diretora comenta que a situação se agrava, especialmente, em um ambiente de trabalho que diminui, não valoriza o empregado, no qual não se é respeitado pela sua cultura, pelos elementos distintos da maioria que trabalha naquele lugar. "Justino e Wanderlei são trabalhadores que compartilham o pequeno espaço de um vestiário, que trocam de uniforme. Há uma indumentária de trabalho que têm de compartilhar entre eles: um colete a prova de balas, um coldre. O sentimento de compartilhar uma arma com alguém que você não sabe como vai usar aquela arma, que está diretamente te ameaçando. Essas violências se repetem muito no cotidiano das pessoas que migram para a cidade e têm que enfrentar o preconceito pela sua origem étnica."
A febre é um filme forte, necessário, que traz questões bem específicas das simbologias dos povos originários. "A cosmologia Desana foi uma referência importante para o filme. Regis era filho de um importante xamã Desana que faleceu recentemente, no ano em que filmamos. O pai dele passou seus conhecimentos. Regis tem um trabalho como curandeiro, como pajé, e conhece profundamente a cosmologia do povo dele", relata a diretora.
A estreia estava programada para abril de 2020 e foi adiada em função da Covid-19. O fato parece ter imprimido ao filme ainda mais importância ao ganhar as telas neste momento, em que todos os problemas do governo federal foram acentuados com a inabilidade de lidar com a pandemia. A questão ambiental e indígena é central nas críticas, assim como a perseguição aos trabalhadores da cultura, que dão luz a esses temas. "Acho que, infelizmente, sim. É muito duro o que estamos vivendo. Seria muito melhor ter estreado em abril, se a gente não tivesse enfrentando tudo que estamos, não só com a pandemia, mas também com toda omissão do Governo, a perseguição aos povos indígenas, e esse genocídio que está sendo feito no Brasil através da omissão do Estado nas suas responsabilidades primárias", reflete Maya.
A realizadora comenta que A febre foi pensado em outro cenário: "Desenvolvi antes do golpe, também. A gente ainda via um Brasil com todas as suas dificuldades. Neste País, a perseguição aos indígenas, o preconceito, o racismo sempre foi muito presente, desde a invasão das Américas. A gente não imaginava isso. Por exemplo, a Vanessa indo estudar Medicina em Brasília, aprovada em uma universidade pelo sistema de cotas, é de um contexto anterior, de oportunidades que tantos indígenas tiveram por uma política que está sendo, de fato, interrompida, e que trazia benefícios para a sociedade não indígena também. É uma dor muito grande estrear o filme neste momento".
Para Maya, seria oportunista de sua parte dizer que o longa teria mais impacto agora: "O melhor é que nada disso estivesse acontecendo. Se essas questões ecoam neste momento, é porque essas forças sempre estiveram aí".

Diálogos transformadores marcam trajetória

Maya Da-Rin lança filme premiado no exterior em cinemas do País e também em streaming

Maya Da-Rin lança filme premiado no exterior em cinemas do País e também em streaming


FELIPPE MUSSEL/DIVULGAÇÃO/JC
Maya é filha de Sandra Werneck e Silvio Da-Rin, dois diretores reconhecidos da cinematografia brasileira, e começou a fazer Cinema com 17 anos, quando estava entrando para a faculdade, e também teve uma trajetória nas Artes Visuais. "O cinema esteve sempre muito próximo de mim por conta da minha família, de um ciclo de convivências também dos meus pais. Com certeza, eles são referências muito importantes para mim, que me formaram, no documentário e na ficção, cada uma à sua forma. Acho que cada um de nós tem um cinema muito pessoal, diferente um do outro, mas os diálogos que pudemos estabelecer ao longo da vida foram transformadores para todos nós", conta.
A realizadora é graduada pelo Le Fresnoy, tem mestrado em Cinema e História da Arte na Sorbonne Nouvelle, e cursou oficinas na Escola de Cinema e TV de Cuba. Participou de residências no Centro de Arte LOBoral (Espanha), na Cinéfondation (Festival de Cannes), e no TorinoFilmeLab (Festival de Torino). Seus trabalhos foram exibidos em festivais como Locarno, Toronto, Rotterdam, e em museus e centros de arte como MoMA e New Museum.

Filmografia da diretora

- A febre, longa de ficção (2019), 98min
- Camuflagem, vídeo-instalação (2013), 6min
- Horizonte de Eventos, vídeo-instalação (2012), 45min
- Versão Francesa, curta (2011), 19min
- Terras, documentário (2009), 70min
- Margem, documentário (2006), 54’
- E Agora José?, documentário (2002), 27’