Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

literatura

- Publicada em 10 de Novembro de 2020 às 21:29

Boca Migotto estreia no universo literário com obra autobiográfica

Registro do autor no trajeto da estrada que permeia narrativa de 'Na antessala do fim do mundo'

Registro do autor no trajeto da estrada que permeia narrativa de 'Na antessala do fim do mundo'


BOCA MIGOTTO/DIVULGAÇÃO/JC
Na antessala do fim do mundo (BesouroBox, 192 págs., R$ 49,90) se transformou no título de estreia do cineasta Boca Migotto na literatura. A ideia inicial era rodar um filme pela América do Sul com o amigo Leonardo Machado como protagonista, mas a morte do intérprete - em setembro de 2018 - transformou os rumos, e o road movie virou um road book, como afirma Claudia Tajes na orelha da publicação.
Na antessala do fim do mundo (BesouroBox, 192 págs., R$ 49,90) se transformou no título de estreia do cineasta Boca Migotto na literatura. A ideia inicial era rodar um filme pela América do Sul com o amigo Leonardo Machado como protagonista, mas a morte do intérprete - em setembro de 2018 - transformou os rumos, e o road movie virou um road book, como afirma Claudia Tajes na orelha da publicação.
Nesse processo todo, o agora escritor conta que seu maior desafio foi ter certeza de que aquilo que estava escrevendo era bom, realmente, do ponto de vista literário. "Não quero, não gostaria de lançar um livro que falasse sobre algo que concerne somente a mim, que não possa estabelecer comunicação com as outras pessoas. Não quero ser preponente a dizer que possa ajudar os outros, mas me comunicar." Depois da leitura de muitos e que três editoras se interessaram por publicar, ele deu continuidade ao projeto.
Na trama, o viajante Diego (que somente no último tratamento do texto ganhou este nome, antes era Leo) procura o seu lugar no mundo, buscando um irmão, após a morte dos pais. Ele sai do Mato Grosso do Sul e atravessa três países para reencontrar sua última possibilidade de família.
A obra será lançada nesta quarta-feira (11) na 66ª Feira do Livro de Porto Alegre, em uma live no canal de YouTube da Editora BesouroBox, às 19h30min. Estarão na transmissão online o autor, que assina a obra como I. Boca Migotto (seu primeiro nome é Ivanir) e o cineasta Tabajara Ruas, com mediação do jornalista Roger Lerina.
Boca Migotto (nome artístico) é cineasta, pesquisador, professor e fotógrafo. Publicitário formado pela Unisinos, estudou também Cinema na Saint Martins College of Arts and Design em Londres. Cursou especialização em Cinema e mestrado em Comunicação na Unisinos.
É doutorando em Comunicação na Ufrgs com extensão na Sorbonne/Paris 3, finalizando a tese sobre a história do cinema gaúcho, que será acompanhada de um documentário explorando a temática. Realizou os longas documentários Filme sobre um Bom Fim (2015), Pra ficar na história (2018), Já vimos esse filme (2018) e O sal e o açúcar (2013), entre mais de 20 curtas.

"Já coloquei um filho no mundo"

Boca Migotto lança obra nesta quarta-feira (11) em live na programação da Feira do Livro

Boca Migotto lança obra nesta quarta-feira (11) em live na programação da Feira do Livro


PATI LARENTIS/BESOURO BOX/DIVULGAÇÃO/JC
Jornal do Comércio - Qual a diferença entre lançar um filme e um livro? A expectativa é de uma pomposa pré-estreia?
Boca Migotto - Não sei se já tive uma linda e pomposa pré-estreia. Quer dizer, a dos meus dois principais longas-metragens foram duas lindas e pomposas pré-estreias, mas isso foi resultado, e não a expectativa. Por exemplo, nunca imaginei que o Filme sobre um Bom Fim, que optamos por lançar no Ocidente, em uma quarta-feira de noite, ia ter tanta gente, com filas dando volta na quadra, que seria necessário fazer três sessões, atrasando a festa que ia ter depois. Foi uma surpresa.
Para o lançamento de Pra ficar na história, planejamos um evento em Garibaldi, com a rua fechada, ao ar livre, que foi lindo demais. Talvez aí possa dizer que houve uma expectativa, porque imaginei fazer assim tal qual foi meu primeiro contato com cinema: numa sessão no Parque da Estação, em Carlos Barbosa, quando era criança. Toda a cidade estava sentada em suas cadeirinhas olhando uma projeção em um vagão de trem, quando ainda tinha trem passando. Aquilo me marcou muito. Mas nenhuma das duas foi pomposa.
Quanto ao livro, a diferença é que, na pré-estreia de cinema, tu estás cheio de preocupação se vão gostar ou não, mas tu olha para as pessoas e vê um sorriso, elas se emocionando, tu escutas elas rindo... Uma sala lotada já te dá um retorno imediato, embora todo o processo seja bastante longo, tal qual o livro. Mas com o livro não acontece isso. Tem gente que comprou e nem leu ainda, que vai ler daqui a dois, três anos. Coloca na estante e fica esperando o momento de ler, eu faço isso, tu deves fazer também. E, ao mesmo tempo, não há contato visual. Tu não ficas na frente de alguém lendo teu livro. Essa é uma diferença básica: o retorno quase imediato do filme, e, com o livro, não ter controle algum sobre isso.
JC - Essa tua "estreia" na literatura chega bem gabaritada: orelha de Claudia Tajes, live com participação do Tabajara e do Roger. Qual tua relação com esses nomes que agora te "referendam"?
Boca - Fui professor do filho da Claudia na Unisinos. Nos encontramos em frente à Casa de Cinema, ela disse que conhecia o Filme sobre um Bom Fim. Ela indicou um consultor, que me retornou com muitas observações. Isso, neste momento, era 60% do que veio a se tornar o livro. O Tabajara Ruas e o Roger Lerina foram convidados pela editora. Talvez tenham aceitado por conhecer meu trabalho no cinema, mas partiu da BesouroBox. O Roger, agora, está lendo minha tese de doutorado.
JC - É impossível ler teu livro sem ter Leonardo Machado em mente. Por algum momento, consideraste levar o projeto do road movie adiante sem ele?
Boca - O legal do livro é que ele tem níveis de leitura. Quem conheceu muito o Leo vai conseguir perceber coisas ali que talvez nem eu tenha percebido ao escrever. Quem conhecia mais ou menos, vai notar algumas. E quem nem sabe quem é o Leo não vai perder nada.
Não pensei em levar o projeto adiante sem ele. Passou nem um ano após a descoberta do câncer. Tínhamos um churrasco à noite, porque em dois dias eu iria para a França fazer o intensivo de francês antes do doutorado. E ele me ligou pra avisar que não poderia ir, que estava no hospital, por causa do fígado. E tem esse detalhe: tive isso, enquanto minha mãe estava no processo do câncer – desde ela sentir dores e morrer foram três meses só. Durante este mesmo período, eu estava fazendo uma série de exames porque existia a desconfiança que pudesse ter um tumor no fígado, obviamente, sem falar a ela. Então, eu estava vivendo o câncer da minha mãe e a possibilidade de câncer em mim, ao mesmo tempo. Por causa disso, eu li muito sobre câncer no fígado e metástase. Quando ele me ligou, eu fui correndo pro hospital. Mas ali naquele momento não era nada, e fiquei tranquilo também. Viajei, e ninguém mais mandou notícia da punção que ele ia fazer, até ter a confirmação do câncer, e foi um ano até ele falecer. Ele acabou falecendo sem nem saber que o livro estava acontecendo, de fato.
JC - Além deste fato relacionado ao teu projeto, o que a morte do Leo significou na tua trajetória, te fez repensar outras coisas?
Boca - Me fez pensar muita coisa, né? O Leo morreu no dia do aniversário da minha mãe, 28 de setembro. A minha mãe morreu no dia do meu aniversário, 10 de março. E, volta e meia, lembro disso e tento estabelecer alguma significância para isso. Por quê? O Leo ia viver um alter-ego meu. Na verdade, se o filme acontecesse, o filme ia ser muito mais o Leo do que eu. E sem o filme, o livro acabou sendo mais eu do que o Leo, porque o personagem estava em construção ainda. Ia ter improvisos do protagonista, ser bastante experimental, e, como todo road movie, ia ser construído ao longo do processo, com a premissa básica: perdi meus pais e tenho que achar os meus irmãos para contar isso pra ele. Isso era eu.
Se tem algo no livro que é totalmente eu é quando eu falo dos meus pais. A relação do personagem Diego com a morte dos pais é o meu sentimento. Já fiquei até com medo de as pessoas comprarem o livro porque gostavam muito do Leo e perceberem que não tem tanto do Leo e se sentirem enganadas ou acharem que eu estava me aproveitando da morte dele. O nome do personagem era Leo até o último tratamento, aí resolvi mudar pra Diego. Algumas pessoas interpretam como homenagem, outras de outra forma, como se estivesse me utilizando da imagem dele. Ninguém ter controle sobre isso, e achei melhor me precaver. Não éramos os melhores amigos, mas tínhamos uma afinidade muito grande, que só teria aumentado.
JC - Como foi o processo de escolha até chegar à definição do título, para sintetizar um trabalho tão longo?
Boca - Teve um momento que a Clara Corleone, quando estava lançando o livro dela (que ganhou o Prêmio Minuano agora, e me deixou bem feliz), disse que tinha vontade de ler o manuscrito. Ela foi a pessoa que leu, tirando a Cristiane Dias, que mais levou a sério. Eu imprimi, ela fez anotações pontuais, me fazendo repensar várias coisas e ter certeza sobre outras. Na antessala do fim do mundo era uma frase que estava no último parágrafo, e a Clara sugeriu terminar o livro com ela. Era uma frase potente para finalizar, ao invés de deixar perdida no meio do parágrafo.
Mas o livro ainda se chamava Ruta 40, o nome do projeto do filme, não conseguia pensar em nada melhor. Até que em determinado momento, na revisão, vi que Na antessala do fim do mundo resume tudo, porque o Diego não chega no fim do mundo (ele nem vai a Ushuaia, descobre que o irmão está mais próximo e desvia o caminho) e é uma metáfora para a situação dele, que perdeu tudo. Ele está a um passo do fim do mundo quando conhece a Maria e não tem mais motivos para ir até ele.
E, paralelo a isso tudo, o Brasil está se encaminhando para o fim do mundo, com a eleição do Bolsonaro. Aliás, como o planeta está nesse momento. Me pareceu um título apropriadíssimo, mas ainda não tinha certeza se ele funcionaria do ponto de vista sonoro, estético, mas aí as pessoas começaram a dizer que gostavam.
JC - Tu escreves academicamente, tu escreves roteiro. O que foi mais desafiador para ti em termos de tratamento de texto para finalizar esta narrativa literária? Foi difícil? Tens planos de seguir na área?
Boca - Foi ter certeza de que aquilo que estava escrevendo era bom do ponto de vista literário. Foi de ter certeza de que aquilo que estava escrevendo era bom do ponto de vista literário. Várias pessoas que leram, inclusive a Maitê Cena, da Besouro, disseram: é um livro cinematográfico, tu imaginas as cenas direitinho. Ele tem essa coisa da ferramenta roteiro. Mas eu contratei um consultor para olhar pro livro do ponto de vista literário. As principais observações dele não tinham a ver com roteiro ou texto acadêmico, mas que eu adjetivava demais: deixa o leitor imaginar. E me falou para cortar várias coisas.
Se eu vou escrever mais? Tenho mais um roteiro de longa que nunca vai ser filmado, provavelmente. Pensei em transformar isso em livro, é um projeto que está comigo há muitos anos...
Já estou falando com a Besouro para lançar a tese no ano que vem, mas de uma forma menos acadêmica. Talvez contar a história do cinema gaúcho que nasceu da minha pesquisa acadêmica paralelamente à minha história pessoal tentando fazer cinema em Porto Alegre, vindo do Interior. Não sei se é o caso, ainda tenho que pensar melhor sobre isso.
Eu gosto de literatura, eu gosto de escrever. E gosto dessa coisa de ficar sozinho, escrevendo, não depender de todo um coletivo. Estou cansado de esperar anos para conseguir realizar um projeto cinematográfico.
Eu gosto de trabalhar o coletivo no set, da equipe junta fazendo algo acontecer, em prol de um único objetivo. Mas o problema é que no Brasil, até chegar a este momento tão prazeroso, tudo demanda muito esforço, muito trabalho, muito tempo. Às vezes leva tanto tempo para conseguir um orçamento para realizar que aquilo nem faz mais sentido pra ti.
Eu sempre uso o Filme sobre um Bom Fim como exemplo: 13 anos para fazer um longa documentário! Sem falar no ponto de vista econômico, os R$ 180 mil que ganhei pra fazer o filme nunca pagaria os 13 anos que me envolvi no projeto. Mas falo do significado disso. No caso do Filme sobre um Bom Fim foi até bom esperar, por um lado. Mas 13 anos é muito tempo. E isso não é exceção, muita gente espera muitos anos para fazer um filme. Então, a literatura tem essa coisa de que é tu contigo mesmo.
E escrever um livro não quer dizer que ele não possa virar um filme, pode ser parte de um processo, inclusive. Então, sim, talvez eu queira continuar na área. Mas não encaro isso como uma obrigação, se nascer, nasceu. Se não, azar, já coloquei um filho no mundo.
JC - Esse lançamento do livro é um fechamento de ciclo, tem outros pela frente: a finalização da tese de doutorado e do documentário sobre o cinema gaúcho. Depois deles, já tens projetos traçados?
Boca - Sim, são encerramentos de ciclos. O longa Pra ficar na história foi também um fechamento da minha relação com a Serra, eu precisava me conhecer melhor. Não acredito em fazer coisas por fazer. Quando filmava meus curtas-metragens na Serra, tinha um motivo pessoal por trás disso, o mesmo quando eu fiz Filme sobre um Bom Fim. Agora, fazendo a tese e o documentário sobre o cinema gaúcho, também há uma razão pessoal por trás disso. O livro tem uma questão pessoal.
Só consigo me apaixonar por um projeto quando esse projeto diz algo de mim, ou através desse projeto consigo me colocar de alguma forma ou esse projeto permita que eu reflita sobre coisas que aconteceram comigo. Naturalmente, tu não vais passar a vida inteira fazendo documentários sobre velhinhos da Serra... Tanto que no Pra ficar na história faço questão de inserir trechos de curtas-metragens que fiz, de me colocar nesse longa-metragem para analisar esse meu papel como realizador de documentários naquela região contando a história de alguém que faz algo parecido através das casas e dos móveis que ele restaura.
O livro tem isso, é um fechamento de um ciclo, mais dolorido, doloroso. E a tese e o novo longa serão outro. A minha demissão da Unisinos fez com que eu pensasse em muita coisa: se quero passar 10 anos para fazer um projeto, se quero me envolver coletivamente com algumas pessoas que já não dizem, pensam o mesmo que eu, se eu quero aos 44 anos de idade seguir pagando pra fazer filme ou gastando muita energia em uma profissão que não me remunera tanto quanto deveria nessa idade e se quero continuar dando aula para um certo tipo de estudante que estuda Cinema como se tivesse fazendo qualquer outro curso, sem “sangue nos olhos”.
Estou repensando minha profissão, sim, não quer dizer que já está decidido. E já pensei, por exemplo, em terminar o doutorado e fazer Psicologia, que é uma área que gosto bastante. Talvez, nesta altura do campeonato, seja interessante, mas também me dá preguiça de voltar para a graduação mais cinco anos. Já pensei em virar escritor e morar na praia... Já pensei simplesmente viajar mais um ano, dois ou três, pela América Latina. E também já pensei em continuar fazendo filmes. E a tese vai ter que virar livro e o filme vai ter que ser lançado, porque depois da minha demissão, o doutorado não fez mais sentido somente para um título, então ele vai ter que se transformar em algo e esse algo é a publicação, nem que eu tenha que pagar do meu bolso. E, depois disso, pela primeira vez na vida, quero deixar a vida me mostrar pra que lado eu vou, o que tem a me oferecer.