Apesar de ser uma coprodução com Paraguai, ser filmado naquele país e também na Bolívia e quase não ter diálogos em português, King Kong en Asunción concorreu na mostra de longas brasileiros no 48º Festival de Cinema de Gramado, sendo considerado um título pernambucano.
O diretor da obra é Camilo Cavalcante, nascido em Recife. E, em debate com transmissão ao vivo nesta sexta-feira (25), ele falou que a participação da autora gaúcha Natalia Borges Polesso no projeto foi fundamental.
No enredo, um velho matador de aluguel (Andrade Júnior) comete o seu último assassinato na região desértica de Salar de Uyuni e se esconde no interior da Bolívia. Após meses isolado, ele viaja para o interior do Paraguai, onde recebe uma boa recompensa e segue para Asunción com o objetivo de conhecer sua filha, concebida há mais de 40 anos, quando ele fugiu do Brasil para o país vizinho após ter matado um homem importante.
O filme tem na equipe profissionais de cinco países latino-americanos: colombianos, paraguaios, argentinos, bolivianos e brasileiros. O roteiro previa inicialmente uma narração em off do próprio personagem (que o diretor concluiu depois que não acrescentaria em nada), e acabou sendo narrado em guarani pela atriz paraguaia Ana Ivanova (de As herdeiras).
É este texto poético, representando a voz da Morte, que é assinado por Natalia Borges Polesso. Cavalcante leu coisas dela e a convidou para participar. “Precisávamos de um escritor, pois a camada literária tem força, relevância, para somar com a camada audiovisual. As subtramas já existiam, Natalia entrou para escrever essa camada poética da voz da Morte, que é sarcástica, antecipa o futuro dos personagens”, conta o diretor.
Natalia escreveu em português e, depois, o texto foi adaptado para o guarani pela atriz e poeta paraguaia Lilian Sosa. “Foi uma adaptação delicada e complexa, pois certas palavras não tinham tradução em guarani”, garante o pernambucano. “A voz é um elemento tão poderoso, que acrescentava tanto, que revisamos toda a montagem, precisávamos equalizar poesia, imagem e som para encontrar equilíbrio que soasse como fábula para adultos. O guarani é o povo massacrado ao longo dos séculos. A intenção era empoderar essa voz tão massacrada; no filme, ela é protagonista. E, no Paraguai, o guarani é língua oficial, é ensinada nas escolas. Se a língua do Diabo é o húngaro, talvez a da Morte seja o guarani.”
Passado colonial, herança indígena, luta, pandemia, política e morte
Natalia Borges Polesso escreveu texto poético que amarra narrativa da fábula audiovisual
LIVIA PASQUAL/DIVULGAÇÃO/JC
A percepções do realizador realmente parecem conversar com a obra da escritora gaúcha. Natalia, que também é pesquisadora e tradutora, é autora de Recortes para álbum de fotografia sem gente, Coração à corda, Pé atrás, Amora (Prêmio Jabuti 2016), Controle e o mais recente, Corpos secos: um romance (Alfaguara, 192 páginas, R$ 44,90 - e-book R$ 29,90), uma ficção científica escrita com Luisa Geisler, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Lançada em março de 2020, a publicação retrata a luta por sobrevivência em um Brasil pós-apocalíptico, repleto de zumbis e assolado por uma doença fatal.
A narrativa distópica tem como pano de fundo uma pandemia e dialoga com o momento atual do País. Para a coluna Um certo alguém, do site do Itaú Cultural, em junho, a escritora afirmou: “Eu quero que as pessoas se eduquem sobre racismo e colonialidade, leiam cada vez mais autoras negras e indígenas. Quero que as lutas sejam intimamente compreendidas e se tornem um compromisso diário. Estamos em um presente de negligências genocidas, de violências reais e simbólicas muito evidenciadas e legitimadas por vozes políticas. Não há novidade da institucionalização da necropolítica, mas o levante tem tomado força”.
Sobre a experiência de ter a estreia de King Kong en Asunción na TV (Canal Brasil) em um momento de pandemia, a produtora-executiva Carol Vergolino, em live do Festival de Gramado, falou: “Toda a solidariedade a essas famílias dos quase 140 mil mortos. Mortos que esse governo de morte fez com que fossem mais do que as esperadas. O cinema também é a interação de corpos. A classe artística foi a primeira a parar e será a última a voltar. Mas este também é um momento de ver outras possibilidades, há também de se esperançar, ver o que há de saldo positivo e promover o festival é um ato de resistência. Saldo de poder ser visto na TV por muito mais gente, mas chegar a isso em cima de muitos corpos é muito triste”.