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literatura

- Publicada em 21 de Maio de 2020 às 22:11

Livro sobre cultura cigana será lançado em live no dia de Santa Sara Kali

Autora Débora Soares Karpowicz foi instigada a pesquisar a partir da observação das mulheres que oferecem ler a sorte no entorno da Praça Montevidéu

Autora Débora Soares Karpowicz foi instigada a pesquisar a partir da observação das mulheres que oferecem ler a sorte no entorno da Praça Montevidéu


LUIS FERREIRAH/DIVULGAÇÃO/JC
A partir da observação de um grupo de ciganas atuando no Centro de Porto Alegre e da forma como as pessoas se relacionavam com aquelas mulheres que ofereciam ler a sorte na mão dos transeuntes, Débora Soares Karpowicz definiu o seu tema de estudo para o mestrado em História na Pucrs - finalizado em 2011.
A partir da observação de um grupo de ciganas atuando no Centro de Porto Alegre e da forma como as pessoas se relacionavam com aquelas mulheres que ofereciam ler a sorte na mão dos transeuntes, Débora Soares Karpowicz definiu o seu tema de estudo para o mestrado em História na Pucrs - finalizado em 2011.
Com isso, verificou a escassez de bibliografia existente sobre o assunto a ser investigado: "Ao iniciar minha pesquisa, há cerca de 10 anos, não havia na minha faculdade nenhum estudo científico sobre este grupo étnico. Eu encontrei, apenas, um livro na área de Filosofia e alguns apontamentos, bem dispersos. Existem, sim, pesquisas relevantes sobre o tema, mas não no Rio Grande do Sul, pelo menos no período em que fiz minha investigação. Provavelmente, já tenha outras pesquisas de relevância, mas nas últimas vezes que procurei, de fato, não tinha absolutamente nada, então isso foi uma das razões que me fizeram pesquisar".
O resultado da grande pesquisa empírica de três anos tem lançamento no livro Ciganos - História, identidade e cultura (Editora Fi, 2018, 339 págs.) Neste domingo, 24 de maio, data em que se comemora, em todo o mundo, o dia de Santa Sarah Cali ou Kali (que significa "negra"), padroeira do povo cigano.
Financiada por um edital de 2016 do Fumproarte, a obra analisa como a tradição se preserva na vida cotidiana de quatro grupos de localidades diferentes do Rio Grande do Sul. Devido às medidas de prevenção ao contágio pela Covid-19, a apresentação da publicação ocorrerá de forma virtual, às 18h, por meio de uma live da autora, que contará com a mediação da produtora cultural Silvia Abreu. O evento será transmitido pelo perfil do Instagram e pela página do Facebook do projeto.
A iniciativa teve apoio do Clube ArteparaTodos, associação de artistas fundada em 2006, sem fins lucrativos, que tem como objetivo estimular, valorizar e divulgar as artes em seus mais variados gêneros, estilos e formas de expressão. A associação visa à colaboração entre artistas, propondo encontros e trocas de experiências, ajudando na produção de exposições e auxiliando na organização profissional dos artistas.
O livro foi escrito a partir de entrevistas com grupos de ciganos de Porto Alegre e Região Metropolitana e não ciganos em diferentes bairros da Capital, além de observações junto à comunidade cigana que trabalha no Centro e, em grande parte, mora na Região Metropolitana. Hoje, Débora é doutora na mesma área, tendo pesquisado a história da Penitenciária Feminina Madre Pelletier (cuja tese, conforme a reportagem apurou, também deve sair publicada, mais para o final do ano). 
JC - Panorama: Qual tua relação com a associação ArteparaTodos?
Débora Soares Karpowicz - Conheci o projeto através da minha amiga e colega de Flamenco Iessa. Dançávamos juntas, e, em um dos nossos encontros, comentei sobre minha pesquisa e o desejo em publicá-la, foi então que ela e seu marido Edison Nunes falaram do projeto e me ofereceram ajuda. Sem o incentivo e as orientações por eles dadas, provavelmente não teria participado deste edital.
Panorama: Teu título de mestre é de 2011. Por que a publicação demorou tanto a sair?
Débora - O distanciamento entre a data de conclusão da pesquisa e a publicação do livro são evidências da dificuldade, que nós autores, temos em transformar conteúdo em conhecimento. A pesquisa acadêmica fica circunscrita aos acadêmicos e não retorna à comunidade, nem mesmo aquelas que contribuíram para a coleta de dados. É uma triste realidade. Outro impedimento são os valores para publicação, o mundo editorial é seleto: quem pode pagar edita; quem não pode fica à mercê de editais e financiamentos. O que ocorreu comigo foi exatamente isso, fiz orçamento com diversas editoras, antes de ganhar o prêmio Fumproarte, mas os preços eram inviáveis para as minhas condições.
Panorama: A verba do Fumproarte também atrasou? Algo foi atualizado na escrita de lá para cá?
Débora - Somente em 2016, através do projeto ArteparaTodos e da minha professora de Flamenco, Carmem Pretto, que tive conhecimento do edital da prefeitura. Eles me incentivaram e deram o apoio com a parte burocrática, que desconhecia por completo. Escrevi todo o projeto e apresentei; eles entraram com o CNPJ e a organização da documentação. Fomos sorteados em 2016, mas a primeira parte da verba só foi disponibilizada no final de 2019. Foi então que startamos o processo de editoração, diagramação e impressão. Sem verba é impossível! O lançamento estava previsto para março de 2020, mas infelizmente não foi possível em função de tudo que estamos vivendo.
O texto que ora compõe o livro é o original da dissertação. Optei por não alterar o conteúdo, pois, tratando-se de uma temática histórica e de pesquisa empírica, pequenas mudanças poderiam acarretar uma desestruturação da problemática de pesquisa inicial. O texto não foi alterado, no entanto a temática continua sendo de meu interesse e busco constantemente me manter atualizada e pesquisando sobre o tema. Atualmente, participo de um grupo de debate com mais de 80 pesquisadores de todo o Brasil. São professores universitários, pesquisadores, estudantes, todos com envolvimento direto na pesquisa, divulgação e desenvolvimento de Políticas Públicas aos grupos ciganos. Ali, nos mantemos constantemente atualizados. Inclusive a epígrafe do livro foi escrita pelopProfessor Rodrigo Teixeira, membro também deste grupo, professor da PUC Minas e referência nos estudos ciganos no Brasil.
Panorama: Qual é a história de vida dessas mulheres que atuam no Centro da Capital e inspiraram tua pesquisa?
Débora - A minha inspiração inicial foram as ciganas do Centro, foi a observação feita ao trabalho delas e, principalmente, a forma como as pessoas as tratavam. Inclusive o título inicial da dissertação, “O olhar de si e o olhar dos outros” foi inspirado nessa observação e no questionário que fiz com as ciganas e com os não ciganos, buscando a percepção que tantos ciganos como não ciganos possuem uns dos outros.
As histórias são múltiplas, são diversos grupos. Como eu falo no livro ser cigano “é uma unidade na diversidade”, ou seja, são grupos diferentes que, dependendo da origem, família, língua não reconhecem outros grupos como ciganos, mas ambos se autodenominam por ciganos. Existe uma identidade e um hábitos que os faz ciganos, mas entre eles há diferenças que fazem com que não se reconheçam, no entanto, todos são ciganos!
Os grupos que circulam pelo Centro de Porto Alegra são vários. Na época, as ciganas que ali estavam moravam em Guaíba. Não cheguei a visitar o acampamento delas, não tive permissão, por isso fui em busca de outros grupos com as mesmas características. Foi então que encontrei o grupo de Alvorada e o de Gravataí, que fizeram com que eu percebesse essa “unidade na diversidade”. No capítulo 3, eu caracterizo os grupos, mostrando suas diferenças e semelhanças.
Minha pesquisa empírica durou três anos, comecei antes de iniciar o mestrado, pois precisava fazer o levantamento das fontes. E, durante todo tempo, estive em contato com os grupos. As visitas eram quase semanais. Cheguei a visitá-los até mesmo no hospital. Mantinha um contato muito próximo.
São mulheres fortes e ao mesmo tempo resignadas, compreendem o papel da mulher dentro da cultura cigana e aceitam essa condição (pelo menos as que tive contato). Nos dois grupos que tive mais contato, ambas se casaram jovens, e o ideal principal desta união eram os filhos, a continuação da família e da cultura. Mas é importante que fique claro que esta etnografia não dá conta dessa pluralidade existente entre os grupos. O meu estudo faz uma análise histórica e etnográfica. Na parte histórica, busco embasar minha pesquisa em documentos, os mais diversos, desde relatos de viajantes até os documentos primários da Torre do Tombo e na parte etnográfica analiso alguns grupos, por isso não posso generalizar.
Panorama: Como a área da futurologia (tarô cigano), a parte espiritual, das crenças, da cultura do povo aparece no teu livro?
Débora - Durante minhas pesquisas de campo, as ciganas pediam sempre para ler minha sorte, mas nunca deixei. Apesar de manter um contato frequente com os grupos, procurei manter um certo distanciamento enquanto pesquisadora. O objetivo não era fazer experimentos, e sim observar e escrever.
No livro, falo da cultura destes grupos e dentro deste aspecto vou descrevendo suas práticas, dentre elas, a leitura da sorte, a relação de pureza e impureza. As questões místicas perpassam o trabalho através de um olhar mais etnográfico, buscando sempre trazer a observação cotejada com o documento e com outros estudos comparativos.
Panorama: Além desta observação do Centro da Capital, tem alguma outra identificação tua, pessoal, com a cultura cigana, que te levaste e se dedicar três anos exclusivamente a esta pesquisa? Tu danças, tem algo a ver? Algum outro costume? Memória afetiva?
Débora - Todos me perguntam dessa ligação, confesso que não sei dizer o porquê. Não tenho descendência cigana e tampouco lembro de alguma memória de infância. Eu danço flamenco desde jovem, e apesar da influência dos ciganos no flamenco, nunca liguei o interesse pelo tema à dança.
O que de fato sempre me tocou na pesquisa foi pensar nos grupos excluídos, e, dentre estes, percebi que os ciganos estavam no topo. Inclusive, enquanto temas de pesquisa. Na época que iniciei minhas buscas, aqui no Rio Grande do Sul, não havia nenhum trabalho de história sobre os ciganos. Inclusive meu ingresso na pós-graduação não foi muito aceito, pois justificaram que não era uma pesquisa relevante. Lembro que vários professores chegaram a debochar do meu tema e até mesmo dizer que “aquilo” não era pesquisa. Ingressei no mestrado graças à minha orientadora Janete Abrão, que na época bancou a relevância da pesquisa. Com toda a certeza, sem a Janete, esta pesquisa não teria saído do projeto. Mas, por fim, minha dissertação foi aprovada com louvor, recebi o prêmio Fumproarte de Humanidades e hoje percebo o quanto esta luta valeu.
Panorama: No imaginário popular, os ciganos compõem um povo colorido, marcado pela itinerância, “louco por ouro”. Um dos subcapítulos da tua obra aborda o nomadismo, prova de quão característico ele é. Essa questão do ouro, das posses, é significativa? 
Débora - A pergunta é muito interessante e nos faz pensar no que havia falado anteriormente, “unidade na diversidade”. Essa característica que descreves está muito presente entre alguns grupos, mas não representa o todo. Sim, existem muitos ciganos com muitas posses, e outros milhares, com quase nada. Trabalho este exemplo no meu livro, o grupo 3 tem exatamente essa característica. Esse foi o único grupo que não era da Região Metropolitana de Porto Alegre, mas por estar no Rio Grande do Sul e ter essa caraterística tão peculiar, achei importante descrever. Eles são muito parecidos com o grupo 1, falam a mesma língua Rom, o que os difere de fato são as atividades econômicas. No casamento que fui eu lembro que o dote da noiva foi pago em dólar, e a festa durou mais de uma semana. Indescritível, só vivendo e vendo!
Panorama: As mulheres costumam perambular pelas ruas mal vestidas, como pedintes. Isso é da cultura, essa diferença de gênero?
Débora - Sim, a diferença de gênero é uma marca importante da cultura. Homens e mulheres possuem lugares e papéis bem definidos.
Panorama: Outra questão normalmente associada a esta cultura é a do preconceito. No livro, abordas o olhar dos viajantes e a representação sobre a aparência dos ciganos. Tu acreditas que a visão discriminatória vem desde o período nas grandes navegações dos europeus? Os ciganos sempre foram um povo à margem?
Débora - O que me levou a pesquisar os ciganos foi ver a discriminação. Depois, em uma pesquisa prévia, saber que estão aqui desde o século XVI, ou seja, fazem parte da formação identitária do Brasil, mas pouco se falou deles na historiografia.
A discriminação é marcante e, infelizmente, sim, é desde que aqui chegaram. Ou melhor, desde que pisaram na Europa. Eu trabalho com diversos documentos, degredos, relatos de viajantes, os primeiros autores que escreveram sobre esses grupos, e o que percebi foi essa constância. A discriminação não mudou, ao contrário, permaneceu até os dias de hoje. No último capítulo, busco fazer essa “medição”, tentando justamente compreender se os estereótipos do passado são ainda reproduzidos no presente. É incrível o resultado!
Panorama: Kali também é o nome de uma das divindades do hinduísmo, considerada uma manifestação da deusa Durga, esposa de Shiva. Há alguma relação com esta santa padroeira do povo cigano, em termos de representação ou significação?
Débora - A pergunta é ótima, mas, cientificamente, não sei responder. No entanto, fizeste com que eu refletisse e voltasse à origem desses grupos. Kali sendo uma entidade Hindu pode sim ter relação com a Santa Sara Kali dos ciganos. Se pegarmos a origem do povo cigano, a mais aceita entre os pesquisadores é que são oriundos da Índia. A partir de comparativos do tipo físico, da língua e de alguns elementos da religião, seriam aparentados dos Hindus. A língua mãe dos ciganos teria uma relação direta com o Sânscrito. Portanto, por analogia, hipótese, sem base científica nenhuma, é possível sim que haja essa relação. Outro fato importante é a representação da Santa Sara, ela é uma santa com pele negra, pois Kali é o feminino de kala = escuro ou preto. Pode ser uma versão cristianizada da entidade Hindu Kali ou Durga. Esse é um tema muito interessante e que merece uma pesquisa aprofundada. Fica a dica!

Refletindo sobre o título e a capa da publicação

Obra Ciganos - História, identidade e cultura foi financiada pelo Fumproarte, com apoio da Arte para Todos

Obra Ciganos - História, identidade e cultura foi financiada pelo Fumproarte, com apoio da Arte para Todos


FUMPROARTE/DIVULGAÇÃO/JC
O título original da dissertação de mestrado de Débora Soares Karpowicz era O olhar de si e o olhar dos outros. Conforme a autora, a escolha em alterá-lo para Ciganos - História, identidade e cultura foi na tentativa de tornar mais simples e atrativo ao grande público. "Na academia optamos por títulos robustos, no entanto, pouco atrativos. O título inicial dá ênfase maior à pesquisa de campo, as entrevistas feitas com os ciganos e os não ciganos. O título do livro é mais genérico, procurando identificar os conceitos que trabalhei ao longo de todo o texto."
A obra que ilustra a capa do livro foi desenhada por uma artista amiga da pesquisadora, Carole Kümmecke, que acompanhou o desenvolvimento dos estudos. "Na época, eu era estudante de mestrado, e ela fazia graduação em Filosofia. Várias imagens foram pautadas: a bandeira, a roda cigana, os acampamentos. Escolhi esta, pois a dança, a música, a alegria e o colorido destes grupos foram características que marcaram a minha pesquisa", explica Débora.