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Cultura

- Publicada em 04 de Março de 2020 às 22:19

A invisibilização do trabalhador no novo filme do britânico Ken Loach

Veterano cineasta faz crítica à terceirização do trabalho em 'Você não estava aqui'

Veterano cineasta faz crítica à terceirização do trabalho em 'Você não estava aqui'


VITRINE FILMES/DIVULGAÇÃO/JC
Tradicional espaço da Capital para reflexão sobre obras cinematográficas, o CineBancários (Gen. Câmara, 424) promoveu na terça-feira (3) outro importante debate sobre um tema atual da sociedade. Motivado pelo filme em cartaz Você não estava aqui, do britânico Ken Loach, a sala de cinema convidou especialistas para debaterem sobre a precarização das condições de trabalho contemporâneas retratadas no longa. 
Tradicional espaço da Capital para reflexão sobre obras cinematográficas, o CineBancários (Gen. Câmara, 424) promoveu na terça-feira (3) outro importante debate sobre um tema atual da sociedade. Motivado pelo filme em cartaz Você não estava aqui, do britânico Ken Loach, a sala de cinema convidou especialistas para debaterem sobre a precarização das condições de trabalho contemporâneas retratadas no longa. 
Participaram da sessão comentada a professora e advogada em Direitos Sociais e Direitos Humanos Luciane Toss (sócia-fundadora da Consultoria Ó Mulheres! e vice-presidenta da Associação Gaúcha de Advogados Trabalhistas - Agetra) e a livreira e produtora cultural Nanni Rios. A mediação foi feita pelo jornalista cultural e crítico de cinema Roger Lerina. 
Endividamento promove precarização do trabalho
Em exibição em mais três cinemas de Porto Alegre (Sala Eduardo Hirtz da Cinemateca Paulo Amorim na Casa de Cultura Mario Quintana, Espaço Itaú no Shopping Bourbon Country e GNC do Shopping Moinhos de Vento), Você não estava aqui mostra uma família lidando com as dívidas contraídas a partir da crise econômica de 2008. O casal e seus dois filhos adolescentes tentam viver dignamente em uma cidade no interior da Inglaterra.
A mulher cuida de idosos e deficientes, enquanto o marido começa a trabalhar para uma empresa de entregas por aplicativo. O plano é trabalhar por dois ou três anos para não pagarem mais aluguel, mas isso implica em mal ver os filhos e nem ter tempo para cuidar da saúde.
Lerina começou contextualizando um pouco a produção na filmografia de Loach, de 83 anos, que é um diretor reconhecido por seu cinema de caráter social. O crítico contou que seu título anterior, o premiadíssimo Eu, Daniel Blake (2016), era para ter sido o último lançamento do cineasta, mas que Você não estava aqui veio na esteira da grande pesquisa feita pelos realizadores para falar do sistema de benefícios sociais da Inglaterra. "Ele iniciou a carreira em meados dos anos 1980 e sempre trabalhou com histórias simples, de pessoas comuns, em situações aparentemente banais: os dilemas do nosso tempo."
Realidade dos aplicativos de transporte no Brasil e no mundo
A realidade dos personagens do longa é de 14 a 16 horas de labuta por dia, com apenas uma folga semanal. A advogada Luciane Toss comentou que essa situação também é verificada no Brasil: "Hoje, no País, são 4 milhões de trabalhadores nesse molde de prestação de serviços, via aplicativos, sendo que 60% são relacionados ao transporte (de passageiros ou entrega de mercadorias). Ken Loach explora os reflexos da redução da tutela do trabalho resultante das reformas trabalhistas. Ele humaniza a classe trabalhadora, porque esse sistema também exige adesão emocional".
Conforme a especialista, a carga horária pesada e os custos que devem ser arcados pelos próprios prestadores de serviço acarreta em "perda total da identidade como pessoa. O sistema invisibiliza os trabalhadores". Luciane afirma que o mercado exige desse sujeito um esforço sobre-humano, sem lazer, que é um dos direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988.
Ainda no aspecto da legislação, a advogada trouxe outros dados sobre o MEI (Micro Empreendedor Individual), que foi instituído no Brasil em 2008 para legalizar trabalhadores informais. Hoje, são 16 milhões. Ela vê que o sistema pode sofrer colapso, pois esse número ainda deve aumentar, uma vez que as plataformas de transportes, a partir de agora, devem credenciar motoristas encaixados nessa categoria – em função do recolhimento de INSS.
Papel da tecnologia no sistema de exploração
“Um dos nomes que se dá a esse sistema é economia on demand, através de aparatos tecnológicos. Esse sistema do capitalismo não é mais pautado pela produção, mas pela prestação de serviço. A solução seria a reumanização de quem presta o trabalho. Todo mundo é número, o que pede a comida e o cara da bicicleta que entrega. A pessoa tem que voltar a ser pessoa”, alertou Luciane Toss.
Nanni Rios concordou que a visão do trabalhador descartável e facilmente substituível é proporcionada pela tecnologia: “Esse sistema é impessoal, totalmente sem subjetividade”. Na opinião da especialista, a tecnologia foi mais uma coisa sequestrada pelo neoliberalismo: “Ela não é sujeito; é objeto”.
Em muitos momentos do debate, discutindo essa falsa ideia de empreendedorismo como liberdade, quando se seria independente para fazer seu próprio horário e ser seu próprio chefe (quando elas constatam a manifestação do poder através da linguagem), a precarização das condições do trabalhador foi comparada a uma forma moderna de escravidão.
Temáticas contemporâneas
“Nesse contexto do homem explorado no filme, eu enxergo um negócio que é extremamente vetorial como são as opressões, de cima para baixo, algo colonizado. Ele é um chefe de família profundamente tomado pelos valores da masculinidade, que fazem que seja estourado, agressivo, não compreensivo, que carregue nas costas esse peso dar uma vida melhor para a família pelo trabalho”, analisou Nanni Rios.
Na construção narrativa de Loach, também foi verificada a sobrecarga do gênero feminino. A mulher sofre duplamente, pois além de sua profissão não ser valorizada, suas necessidades não serem consideradas pelo marido, ainda é dela a responsabilidade pelas tarefas domésticas e a educação dos filhos – sendo assim, a culpa é dela se algo não correr bem.
Outros temas transversais na obra do cineasta britânico são a violência urbana, a falta de perspectiva dos jovens, o abandono dos idosos, as dificuldades dos deficientes, o preconceito e o bullying, além da total dependência de um objeto chamado telefone celular.
Cinema como lugar de pensamento
Nanni Rios comemorou o fato de a sala estar cheia para a exibição e se manter assim para o debate: “Já vi muitas coisas bonitas e revolucionárias no CineBancários”. Roger Lerina deu coro à observação, relacionando com a temática do longa. “Esta coisificação, essa atomização da sociedade é denunciada no filme. Não existe grupo de rede social, mesmo de cinéfilos ou de pessoas interessadas em cultura e arte, que substitua o valor desse encontro presencial. Isso só é possível por conta de espaços como o CineBancários.”
O jornalista caracterizou a sala como um lugar de resistência em Porto Alegre. “É um cinema de calçada com uma programação excepcional feita pela Bia Barcellos, só com filmes de arte, independentes, autorais, que não estão no circuito comercial, com ênfase em filmes brasileiros, mas também sul-americanos e ibero-americanos como predileção”, detalhou.
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