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reportagem cultural

- Publicada em 17 de Agosto de 2018 às 01:00

Arauto da transgressão, Ói Nóis Aqui Traveiz completa 40 anos

Ousadia e virulência marcaram a estreia e, de certa forma, a história do grupo

Ousadia e virulência marcaram a estreia e, de certa forma, a história do grupo


CLAUDIO ETGES/DIVULGAÇÃO/JC
O palco estava cercado de arame farpado. O cenário era um lixão abarrotado de folhas enrugadas de jornais, de onde personagens maltrapilhos arremessavam pedaços de carne crua (como se fossem vísceras humanas) em direção ao público. Não havia muito espaço para se esquivar - a plateia estava encurralada numa fileira única de cadeiras, entre a cerca espinhosa e a parede do teatro. Alguns instantes depois, esgueirando-se entre as farpas de aço, os atores ultrapassaram os limites do palco para se acomodar, literalmente, no colo dos espectadores que tinham vindo conferir a estreia do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz. Foi um verdadeiro escândalo.
O palco estava cercado de arame farpado. O cenário era um lixão abarrotado de folhas enrugadas de jornais, de onde personagens maltrapilhos arremessavam pedaços de carne crua (como se fossem vísceras humanas) em direção ao público. Não havia muito espaço para se esquivar - a plateia estava encurralada numa fileira única de cadeiras, entre a cerca espinhosa e a parede do teatro. Alguns instantes depois, esgueirando-se entre as farpas de aço, os atores ultrapassaram os limites do palco para se acomodar, literalmente, no colo dos espectadores que tinham vindo conferir a estreia do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz. Foi um verdadeiro escândalo.
Naquela noite de 31 de março de 1978 (data escolhida a dedo, como forma de afrontar o golpe militar, aniversariante do dia), foram apresentadas as peças A divina proporção e A felicidade não esperneia, patati, patatá, de Júlio Zanotta Vieira.
Algumas pessoas na plateia, indignadas ou apenas aborrecidas, ainda antes da metade do espetáculo, tomaram o rumo da porta de saída do pequeno teatro da rua Ramiro Barcelos, 485, a poucos passos da esquina com a avenida Cristóvão Colombo. As que ficaram, testemunharam a apresentação histórica de um grupo de teatro que, nos 40 anos seguintes, marcaria sua atuação pela transgressão e a ousadia.
É verdade que Porto Alegre já havia assistido a peças de vanguarda no passado, como Homem: variações sobre o tema, encenada por Luiz Arthur Nunes no Salão de Atos da Ufrgs, em 1969. Nela, os personagens também tocavam fisicamente os espectadores, mas "não com intenção de confronto, e sim numa tentativa de envolvimento", esclarece Nunes, hoje radicado no Rio de Janeiro.
Outra produção que causou "reações de amor e ódio" foi A morta, de Oswald de Andrade, dirigida por Ana Maria Taborda, em 1977, como lembra o ator Júlio César Saraiva, que recebia o público com o corpo esticado dentro de um caixão no hall de entrada do Teatro de Câmara. Em meio à polêmica, num gesto simbólico para marcar posição favorável à montagem performática e anárquica de Taborda (capixaba que trabalhou no Sul nos anos 1970, tendo falecido em 2008), o escritor Caio Fernando Abreu se dispôs a ficar na bilheteria vendendo ingressos.
Seja como for, nenhuma experiência anterior na cena teatral porto-alegrense poderia se comparar, em termos de ousadia e virulência, à estreia do Ói Nóis Aqui Traveiz.

Nos caminhos do teatro político

Peças acompanharam a política brasileira, desde a redemocratização até lutas por conquistas sociais

Peças acompanharam a política brasileira, desde a redemocratização até lutas por conquistas sociais


CLAITON DORNELLES /JC
Do começo no teatrinho da Ramiro Barcelos até completar quatro décadas, as peças do Ói Nóis Aqui Traveis acompanharam as pegadas da cena política brasileira, desde a campanha pela redemocratização do País até as lutas por conquistas sociais. "O trabalho que fazemos é essencialmente político, tanto no que estamos dizendo quanto na forma como abordamos o teatro", explica Paulo Flores, 63 anos. Ele é o único remanescente entre os fundadores e atravessa o tempo como baluarte de um dos grupos de teatro mais longevos do Brasil.
Na relação das companhias há mais tempo em atividade contínua no País, o Ói Nóis figura ao lado do Teatro Popular União e Olho Vivo (SP), de 1970, e do Imbuaça (SE), de 1977. Dá para citar também o Tá Na Rua (SP), que ganhou a denominação em 1980, embora já estivesse antes em ação sob a liderança de Amir Haddad.
O Ói Nóis causou furor já em suas primeiras aparições, dentro e fora do palco. Para divulgar as peças, Flores aparecia nas redações dos jornais de bermuda e sem camisa, acompanhado por Zanotta Vieira de smoking, calção e chinelos, com um violino nos braços. O gosto pela polêmica se manifestou também na proposta de interromper espetáculos alheios para denunciar a caretice (na visão do Ói Nóis, é claro) das produções.
A ideia ainda estava amadurecendo nas discussões internas, quando um dos atores, Adauto Ferreira (falecido em 1984), decidiu praticar uma "ação de guerrilha quase dadaísta", segundo Flores, interrompendo por conta própria a peça Frankie, Frankie, Frankenstein, dirigida por Irene Brietzke no Teatro de Câmara. "A intenção era distribuir um manifesto com os objetivos do ato, mas não deu tempo de produzir o texto."
Algum tempo depois, o dramaturgo paulista Plínio Marcos veio a Porto Alegre para mostrar Sob o signo da discoteca no Teatro de Arena. "Era um texto bem fraco, não dos mais conhecidos dele", alfineta Flores. Uma pessoa próxima do Ói Nóis, que havia trabalhado na divulgação, conseguiu alguns ingressos para os integrantes do grupo. Ao vê-los aboletados na plateia e já ciente do bafafá com Irene Brietzke, o autor de Dois perdidos numa noite suja reagiu qualificando-os como "fascistas e piolhentos". As farpas verbais se acentuaram no debate ao final do espetáculo, até o ponto em que Plínio Marcos deu um safanão em Ferreira. "Aí fechou o tempo, com socos e pontapés para todo o lado. Demorou até acalmar os ânimos", recorda Paulo Flores.
Os incidentes polêmicos não eram casuais. O Ói Nóis surgiu numa época de audácias nas áreas da cultura e do comportamento. No teatro, em particular, havia uma profusão de grupos que buscavam novas formas de comunicação com o público. Não era fácil, contudo, manter-se atualizado num tempo em que as informações não circulavam de modo instantâneo de um canto a outro do planeta graças à web, como acontece hoje. Pior que isso: a censura filtrava o que podia ou não ser lido ou visto.
"A gente precisava lidar também com a escassez de livros sobre teatro publicados no Brasil", lembra Flores. O teatro e seu duplo, de Antonin Artaud (1896/1948) - ator, dramaturgo e poeta francês, inventor do Teatro da Crueldade, uma das principais referências da arte de contestação dos anos 1970 -, por exemplo, chegou às mãos do fundador do Ói Nóis numa edição em espanhol.

Longevidade com novos desafios

Paulo Flores em O nascimento do doutor Fausto, de acordo com o espírito de nosso tempo (1994)

Paulo Flores em O nascimento do doutor Fausto, de acordo com o espírito de nosso tempo (1994)


CLAUDIO FACHEL/DIVULGAÇÃO/JC
Nas últimas quatro décadas, já sem os arroubos juvenis, o Ói Nóis ganhou o reconhecimento de público e de crítica com trabalhos multipremiados. Além disso, passou a contar com apoio de instituições como Petrobras e Sesc sem perder a independência do processo de criação.
No momento, o que mais atormenta a tribo é o aperto para pagar os custos das produções e o aluguel da Terreira da Tribo. Caliban - A tempestade de Augusto Boal, espetáculo de rua inspirado numa versão de Boal para o clássico A tempestade, de Shakespeare, por exemplo, depois de circular por várias regiões do País com o Palco Giratório Sesc, não conseguiu financiamento para visitar o interior gaúcho.
"O que acontece é que estamos vivendo agora um período de retrocesso político, e esse clima de fechamento se reflete na vida do grupo, principalmente na questão econômica", comenta Paulo Flores. Ele argumenta que, nas democracias - ou pelo menos nas mais evoluídas - artistas críticos ou de contestação têm respaldo para que suas atividades possam atingir a maior fatia de público que for possível, em especial as plateias que não contam com recursos para desfrutar das obras de arte. "Isso é uma prática mundial, e o Brasil esteve perto de alcançar esse objetivo quando tudo deu para trás", assinala.
De qualquer modo, o Ói Nóis continua "dando a cara a tapas", na expressão de Tânia Farias, o que significa experimentar novas formas de atuação às quais não está habituado. Ela cita como exemplo a fusão de linguagens de teatro e dança em Medeia Vozes - Açorianos em oito categorias, incluindo as de melhor atriz (para a própria Tânia), espetáculo e direção, em 2013. "É também um trabalho que dialoga com o teatro documental de uma maneira que nunca havíamos feito antes", acrescenta ela.
Outra experiência desafiadora é Evocando os mortos - Poéticas da experiência, em cartaz há cinco anos, uma "desmontagem" na qual Tânia ocupa solitariamente o palco, algo raro na biografia do Ói Nóis, "acostumado a levar uma multidão para dentro da cena", como ela brinca. A atriz observa que o próprio conceito de "desmontagem" é algo inédito a ponto de se tornar difícil defini-lo. "Não é aula-espetáculo ou demonstração técnica de atuação, apesar de flertar com isso. Talvez esteja mais próximo de um manifesto estético e político, embora os elementos efêmeros que caracterizam o ritual e a mise-en-scène do teatro se façam presentes", observa ela.
Por sinal, o trabalho em fase de gestação, Meierhold, segue o formato de pouca gente em cena - apenas Paulo Flores e a atriz Keter Velho. "É um exercício que aborda os desafios de fazer teatro nestes tempos tão complexos e sombrios", antecipa Tânia. Para tanto, reúne as trajetórias de três personagens ligados à cena teatral - Vsevolod Meierhold (1874 - 1940), ator e diretor russo; Eduardo Pavlovsky (1933 - 2015), dramaturgo e psicanalista argentino (pioneiro do psicodrama na América Latina); e o próprio Paulo Flores, fundador do Ói Nóis.
O espetáculo é uma adaptação livre da peça Variações Meierhold, que Pavlovsky lançou em 2005 e, no ano seguinte, trouxe para a 13ª edição do Porto Alegre Em Cena. Depois de trabalhar no começo da carreira com Stanislavski e Tchecov, Meierhold - o eixo da narrativa - se aproximou das vanguardas futuristas e expressionistas, além de estudar escolas populares de teatro como a commedia dell'arte. Em 1917, se engajou na revolução bolchevique, o que não impediu que viesse a ser preso e depois executado a tiros na cadeia, em 1940, por não se curvar ao cerceamento à liberdade de criação artística do regime stalinista.
No monólogo estruturado em fragmentos, Paulo Flores encarna Meierhold na prisão, já com idade avançada, alternando pensamentos em voz alta, relatos e conversas imaginárias com diferentes interlocutores. Embora a perseguição ao teatrólogo russo tenha se dado nos anos 1930, em meio às atrocidades do stalinismo, a encenação busca traçar comparações com a situação atual do Brasil. "Há paralelos como a ameaça à liberdade de expressão, com manifestações de censura, fechamento de exposições e perseguição de artistas, além do uso de delações para incriminar pessoas com força política na sociedade", observa Paulo. O novo espetáculo do Ói Nóis Aqui Traveiz deve entrar em cartaz ainda neste ano.

Desmaios na plateia e a rua como espaço cênico

A matriz cênica do Ói Nóis também sofreu influência das montagens inovadoras do Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa, como Roda Viva (1968), de Chico Buarque, e O rei da vela (1971), de Oswald de Andrade. Igualmente, reverberaram entre os integrantes do grupo os ecos das intervenções do Living Theather, de Julian Beck e Judith Malina, em locais públicos de Nova Iorque, bem como da estética despojada do polonês Jerzy Grotowski, que pregava um teatro quase exclusivamente baseado na presença física do ator diante do público. "Essencialmente, o que se buscava era romper os limites do palco italiano para ter um contato mais direto com o espectador", enfatiza Flores.
Neste sentido, o teatro ambientalista do norte-americano Richard Schechner talvez tenha sido a dinâmica de atuação mais próxima do Ói Nóis, na qual o público se vê mergulhado dentro do espaço cênico. Os atuadores gaúchos a denominam "teatro de vivência". É quando as ações se desdobram em diferentes cantos do cenário, obrigando o espectador a bater pernas para acompanhar tudo o que se passa.
Em algumas ocasiões, a plateia experimentou sensações de claustrofobia, como em Ostal, que ganhou os prêmios Açorianos de melhor espetáculo, cenografia e produção de 1987. Para início de conversa, o público passava por um túnel estreito e sombrio até chegar ao local da representação. Ali, era obrigado a colocar uma máscara cirúrgica no rosto para assistir à peça de 75 minutos, pontuada a maior parte do tempo por gemidos e grunhidos de uma mulher atormentada - o trabalho é uma livre adaptação do texto de Aldo Rostagno, do grupo italiano Cfr (Confrontação), que aborda a esquizofrenia. A sensação de aflição era tamanha que alguns espectadores desmaiavam. Nestes casos, eram atendidos por um dos personagens (o médico-psiquiatra, naturalmente), o que fazia com que fossem incorporados à ação cênica.
O teatro de rua é outra vertente que marca profundamente o percurso do Ói Nóis, a partir da pesquisa de novos espaços para o ato teatral. Mas, antes de apresentar o primeiro espetáculo ao ar livre - Teon, de 1985, que denuncia o extermínio dos índios no Brasil -, o grupo se fez presente em passeatas do começo dos anos 1980, que quase sempre acabavam num cenário enfumaçado por bombas de gás lacrimogêneo. "Ainda que fosse a última fase da ditadura, existia muita repressão", diz Flores. Esses protestos de rua tinham como foco temas como a ecologia e a energia nuclear (o governo militar cogitou na época produzir uma bomba atômica), ainda incipientes na pauta dos movimentos políticos.
Fora a questão política, o impulso de ocupar as ruas reflete o desejo de atuar diante de um público distinto daquele que habitualmente frequenta os teatros fechados. Quem sai de casa para assistir a uma peça, em tese, está predisposto a interagir com a linguagem do palco. Já os transeuntes das vias públicas, menos habituados a um aparato de códigos para interpretar a ação cênica, são pegos desprevenidos. Com isso, a reação da plateia de rua é sempre imprevisível, o que desafia o elenco. "Tudo o que envolve a relação entre ator e público faz parte das inquietações do grupo e a saída para a rua é parte disso", assinala a atriz Tânia Farias.

Principais espetáculos*

  • Divina proporção e A felicidade não esperneia Patati Patatá (Júlio Zanotta Vieira) - 1978
  • As domésticas (Jean Genet) - 1985
  • Fim de partida (Samuel Beckett) - 1986
  • A exceção e a regra (Bertold Brecht) - 1987
  • Ostal (Aldo Rostagno) - 1987
  • Antígona - Ritos de paixão e morte (Sófocles) - 1990
  • Missa para atores e público sobre a paixão e o Nascimento do doutor Fausto, de acordo com o espírito de nosso tempo - 1994
  • Álbum de família (Nelson Rodrigues) - 1996
  • A morte e a donzela (Ariel Dorfman) - 1997
  • Hamlet máquina (Heiner Müller) - 1999
  • Aos que virão depois de nós - Kassandra In Process - 2003
  • O amargo santo da purificação - Uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella - 2008
  • Medeia Vozes - 2013
  • Caliban - A tempestade de Augusto Boal (A partir de adaptação de Boal para clássico de Shakespeare) - 2017
*Montagens sem indicação de autoria são criações coletivas do grupo