Dois livros lançados recentemente dão conta da vida de dois artistas das artes cênicas de Porto Alegre com enorme contribuição nas últimas décadas. Um deles é um diretor e veio do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Vasconcelos. O outro é uma atriz, natural de Porto Alegre, com carreira desenvolvida no centro do país, mas que retornou aos pagos, Suzana Saldanha. Tenho tido a oportunidade, ao longo de algumas décadas, de largas convivências com ambos.
Suzana Saldanha é praticamente da mesma geração que eu. Em Nunca pensei em ser atriz ela recupera a memória de sua carreira, começando justamente pela opção que surgiu, num repente, depois de assistir a My fair lady, no então Teatro Leopoldina. Filha de família tradicional, vocacionada para ser professora, vai sofrer um trauma: seu noivo sofre um acidente fatal. Desnorteada, a jovem decide-se, de vez, pelo teatro. E ei-la ao lado de Maria Helena Lopes e Luiz Arthur Nunes. A carreira começava.
Sempre lembro de Suzana - felizmente, ela ainda está viva e muito bem viva, obrigado - a partir de sua risada. Suzana tem uma gargalhada espontânea, cativante, açambarcante... Quem há de lhe resistir. Ela encarna a alegria de viver. Mais recentemente, já aposentada como professora de artes dramáticas, mas não enquanto atriz, retornou a Porto Alegre para cuidar de sua mãe idosa. Mas com mil planos: espetáculos, livros de memórias, cursos e, sobretudo, cativar amizades. O volume publicado pela Ardotempo, de Alfredo Aquino, com capa de Gilberto Perin, seu velho amigo, é uma viagem no tempo. Mais que isso, uma reflexão apaixonada sobre a arte de representar. O que teria sido Suzana Saldanha se não atriz? Homem: Variações sobre o tema foi o primeiro espetáculo em que atuou dirigida pelo amigo de sempre, Luiz Arthur Nunes. Logo depois, fez um solo em Amiga telespectadora, ainda dirigida por Nunes. Mas havia o que hoje se pode denominar, claramente, uma geração de gente de teatro, incluindo Haydée Porto, José Ronaldo Faleiro, Maria Luiza Martini, Nara Kaiserman, Beto Ruas, Arines Ibias, Isabel Ibias, e assim nasceu o Teatro de Província, a que se juntaria, em algum momento, a artista plástica Magliani e o jovem escritor Caio Fernando Abreu, de quem se fizeram representar os primeiros textos. Não consultei meus arquivos, mas eu devo ter escrito sobre praticamente tudo o que Suzana Saldanha encenou em Porto Alegre. Por isso, ler seu depoimento - aliás, transformado no espetáculo solo de teatro com o mesmo título - é uma viagem no tempo. Em ambos, se reúne o depoimento e a reflexão sobre a arte dramática, mas sobretudo, seu amor - mais, sua paixão - pelo palco. Sim, pode ser que Suzana nunca tivesse pensado em ser atriz, mas o que mais ela seria, se não se tivesse tornado a atriz que é?
Um pouco diferente é o livro que o diretor teatral Luciano Alabarse escreve sobre seu amigo de toda a vida, Luiz Paulo Vasconcelos. Trata-se de Maestro Soberano, projeto mais pretensioso, transformando o texto em um verdadeiro objeto de arte, com um projeto gráfico de Flávio Wild, apresentando um texto não menos emotivo a respeito do diretor carioca.
A chegada de Vasconcelos ao Rio Grande do Sul não foi fácil. Logo depois do AI-5, muitos professores foram expurgados das universidades federais, dentre os quais aqueles da Ufrgs, em especial os da Faculdade de Letras e do Departamento de Arte Dramática. Gerd Bornheim, então diretor do DAD, foi um deles, e para substituí-lo, escolheu um professor recém chegado do Rio de Janeiro, sobre o qual logo pesaram desconfianças sobre sua vinculação com os "esbirros da ditadura". Eu era aluno do curso de Letras e cursava algumas disciplinas no DAD, onde, muito tempo depois, a convite de Ivo Bender e de Sergio Silva, viria a lecionar. Acompanhei, assim, mais ou menos de perto, todos estes acontecimentos. Não deve ter sido fácil, para aquele jovem diretor, que logo ao chegar encantou e provocou o público com uma montagem de A ópera dos três vinténs, de Brecht, enfrentar a situação. Mas Luiz Paulo sobreviveu e foi, aos poucos, merecendo o respeito de todos.
Os dois livros, cada um por caminhos diversos, a partir de dois personagens, de certo modo contam uma história em comum: a vitalidade do teatro em Porto Alegre. Uma vitalidade que devemos a gente como eles, a quem sempre devemos agradecer.