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Teatro

- Publicada em 29 de Outubro de 2021 às 03:00

O compositor traiu a si e a seu personagem

Antonio Hohlfeldt
Uma obra de arte é verdadeiramente posta em avaliação quando chega ao público receptor. Nenhum poema, nenhuma pintura, nenhuma peça dramática é, em si mesma, um produto artístico acabado. Como já registrou Pierre Bourdieu, não se trata apenas da intenção do autor/artista, mas implica, sobretudo, na percepção, na aceitação e na compreensão do receptor. Por isso, muitos trabalhos, hoje consagrados, foram, num primeiro momento, rejeitados. A ópera O engenheiro, com libreto e partitura de Tim Rescala, suscita no espectador um sem número de questões. A coluna não tem espaço para o aprofundamento de todas elas, mas quero deixar ao menos registradas algumas perspectivas. O engenheiro é, antes de tudo, fruto de uma iniciativa louvável, um concurso para a criação de óperas de câmara, e a simples escolha do personagem é igualmente admirável. Trata-se de uma ópera em ato único, o que exige concentração da ação dramática - isso o compositor resolveu a contento. Escolheu a madrugada anterior ao golpe republicano, levando a Família Real ao exílio. Musicalmente falando, Rescala fez um qualificado aproveitamento da melodiosa música brasileira, notadamente a carioca, através da chamada modinha imperial. Do ponto de vista da escolha dos personagens, em tese também se pode admitir uma seleção acertada: o mencionado engenheiro, André Rebouças, sobrevivente da Guerra do Paraguai, inventor reconhecido, defensor da igualdade social e da libertação dos escravos, monarquista tão fiel que vai acompanhar Dom Pedro II no exílio; a Princesa Isabel e seu marido, Conde d'Eu; um casal de nobres; um casal de negros recém-libertos e que sobrevivem - perseguidos e discriminados - da venda de quitutes junto ao Paço Imperial; um guarda do Palácio; uma ex-escrava que perambula de um lado a outro, sem nenhuma função dramática explícita; e um Conselheiro.
Uma obra de arte é verdadeiramente posta em avaliação quando chega ao público receptor. Nenhum poema, nenhuma pintura, nenhuma peça dramática é, em si mesma, um produto artístico acabado. Como já registrou Pierre Bourdieu, não se trata apenas da intenção do autor/artista, mas implica, sobretudo, na percepção, na aceitação e na compreensão do receptor. Por isso, muitos trabalhos, hoje consagrados, foram, num primeiro momento, rejeitados. A ópera O engenheiro, com libreto e partitura de Tim Rescala, suscita no espectador um sem número de questões. A coluna não tem espaço para o aprofundamento de todas elas, mas quero deixar ao menos registradas algumas perspectivas. O engenheiro é, antes de tudo, fruto de uma iniciativa louvável, um concurso para a criação de óperas de câmara, e a simples escolha do personagem é igualmente admirável. Trata-se de uma ópera em ato único, o que exige concentração da ação dramática - isso o compositor resolveu a contento. Escolheu a madrugada anterior ao golpe republicano, levando a Família Real ao exílio. Musicalmente falando, Rescala fez um qualificado aproveitamento da melodiosa música brasileira, notadamente a carioca, através da chamada modinha imperial. Do ponto de vista da escolha dos personagens, em tese também se pode admitir uma seleção acertada: o mencionado engenheiro, André Rebouças, sobrevivente da Guerra do Paraguai, inventor reconhecido, defensor da igualdade social e da libertação dos escravos, monarquista tão fiel que vai acompanhar Dom Pedro II no exílio; a Princesa Isabel e seu marido, Conde d'Eu; um casal de nobres; um casal de negros recém-libertos e que sobrevivem - perseguidos e discriminados - da venda de quitutes junto ao Paço Imperial; um guarda do Palácio; uma ex-escrava que perambula de um lado a outro, sem nenhuma função dramática explícita; e um Conselheiro.
A estratégia vitoriosa do maestro Evandro Matté, que fez com que a Orquestra do Theatro São Pedro fosse uma das cinco instituições de câmara do País a concretizar uma das cinco obras, é oportuna e deve ser decididamente louvada. A encenação foi inteligente: a direção de José Henrique Moreira acertou em todas as suas decisões, à exceção daquele casal de nobres cujas funções ficaram ridículas; os figurinos de Antonio Rabadan caracterizam bem os personagens; o espaço único, criado por Rodrigo Shalako, adaptou-se bem ao relativamente exíguo palco do Theatro São Pedro: o cenário é limpo, bem identificável - a iluminação de José Luís Fagundes ajudou muito nisto - e colorido, com bom gosto; a regência de Matté, como sempre, foi perfeita. O maestro evidenciou dominar a partitura e o conjunto musical foi irretocável. A obra, no conjunto, mostrou-se agradável e exitosa. Pode-se dizer, então, que tudo andou bem?
Na verdade, não: saí frustrado e quase indignado. É a partir da análise da estrutura da obra, antes de mais nada, que o espectador crítico se dá conta de uma série de equívocos e de erros cometidos pelo autor: o mais grave é que ele tinha a obra na mão, quando iniciou a narrativa centrada na figura dos dois jovens negros vendedores de quitutes. Se tivesse desenvolvido todo o seu trabalho a partir de sua ótica, e não sob a perspectiva de uma história oficial caduca e ultrapassada, alcançaria a obra-prima. Traiu-se e traiu a seu personagem. Salvou-se apenas no momento mais tocante da encenação, a ária de Rebouças a respeito da utopia de Libéria, a colônia agrícola que seria entregue aos negros libertos para trabalharem a terra. A obra se fecha devolvendo os dois personagens negros ao centro da cena, mas então, nem eles, muito menos Rebouças, significam mais nada: o que deixa o gosto amargo é que a utopia nunca, jamais se realizou. As elites conservadoras do País, sobretudo depois da república, e ainda mais hoje, negam-se radicalmente a uma verdadeira reforma agrária. Rebouças confessa aos jovens negros vendedores que perdera. Vira as costas, abandona-os, simplesmente, vai para a Europa e lá, tudo indica, viria a se suicidar. Foi um visionário. Rescala acertou em escolhê-lo como personagem. Mas parece que a etnia branca do compositor impediu-o de entender e retratar corretamente o engenheiro negro. Sobrevive, acima de tudo, a estupenda interpretação de David Marcondes, sob todos os aspectos. Tem voz, tem personalidade e tem identidade.
 
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