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Teatro

- Publicada em 10 de Setembro de 2021 às 03:00

Refletindo sobre a falsa classe cordial

Antonio Hohlfeldt
O novo trabalho de Deborah Finnochiaro, intitulado Classe cordial, desde sua denominação é uma abordagem crítica de uma certa condição, a partir de uma proposta, de décadas atrás, do historiador Sérgio Buarque de Holanda sobre o povo brasileiro, de ser um elemento cordial. Se, à época, esta proposição foi bem recebida e aceita, hoje é amplamente contestada e os acontecimentos recentes dos últimos anos bem o evidenciam. Por consequência, o espetáculo a que se assiste se transforma numa experiência chocante, porque reveladora e conscientizadora, como um soco na boca do estômago.
O novo trabalho de Deborah Finnochiaro, intitulado Classe cordial, desde sua denominação é uma abordagem crítica de uma certa condição, a partir de uma proposta, de décadas atrás, do historiador Sérgio Buarque de Holanda sobre o povo brasileiro, de ser um elemento cordial. Se, à época, esta proposição foi bem recebida e aceita, hoje é amplamente contestada e os acontecimentos recentes dos últimos anos bem o evidenciam. Por consequência, o espetáculo a que se assiste se transforma numa experiência chocante, porque reveladora e conscientizadora, como um soco na boca do estômago.
O foco do texto - do ponto de vista da teoria dramática, trata-se de um monólogo - é a condição de excluídos e violentados em que são colocados os chamados "loucos" ou desprovidos de razão - pela sociedade brasileira. Assinado por Thiago Silva e interpretado em solo pela atriz Deborah Finnochiaro, o texto tem direção de Jardel Rocha. Formalmente um monólogo, é, na verdade, um discurso me uma denúncia contra essa condição de iniqüidade a que nossos loucos são condenados, bastando observar-se as condições de nosocômios como o chamado Hospício São Pedro, em Porto Alegre.
O espetáculo duração aproximada de 30 minutos, mas apresenta uma densidade extremamente impactante, através de sete momentos diversos. É importante destacar-se a produtiva adequação da linguagem teatral (artes cênicas) com a do vídeo (arte visual) em que, por exemplo, utilizam-se corretamente a opção entre seqüências em preto e branco, de aprofundamento reflexivo e de maior dramaticidade, e aquelas em cor, que são mais narrativas. Ou, então, o uso de uma câmara em close, junto à face da atriz/personagem, revelando as marcas que o "tratamento" lhe produz, em contraposição a um certo distanciamento da câmara, permitindo ao personagem circular pelo espaço (ainda que estreito) de sua cela/prisão.
A busca e a preservação da identidade, a condenação a remédios cujas consequências desconhece, o abandono e a solidão, eis alguns dos temas que atravessam o texto, evidenciando um processo de desumanização e aviltamento que o sujeito sofre ao longo de todo este processo. A performance de Deborah Finnochiaro é contundente, porque ela bem compreendeu que a câmara dispensa maior gesticulação e, assim, é uma interpretação contida, subjetivada, que vamos encontrar, o que por certo deve ser difícil para uma atriz que lida com tanta naturalidade com a comédia, por sua natural expansividade.
Classe cordial, escrevi acima, fala a respeito da condenação e da marginalização a que os considerados "loucos" estão condenados. Mas, por extensão, é também a metáfora de uma condenação semelhante a que todos os párias sociais, sobretudo aqueles que experimentam a miséria pecuniária e a impossibilidade de sobrevivência social, são condenados. Não é um trabalho, pois, fácil de ser assistido, inclusive pela dramaticidade da trilha sonora de Angelo Primon - que vem se notabilizando neste tipo de trabalho - a iluminação de Everton Wilbert Vieira e a edição e finalização do diretor Jardel Rocha que garante, assim, uma obra extremamente pessoal.
Classe cordial é um espetáculo oportuno, sobretudo diante das tensões que vive o país nos últimos meses, revelando uma face até então escondida ou camuflada de nossa realidade social: o preconceito e o desrespeito humanos, o que nos leva a refletir sobre a crescente racialização do discurso de violência que tem marcado nossa realidade. Relembre-se, dentre outros episódios, o fato de que o escritor Lima Barreto, preto, deprimido e dependente alcoólico, foi por diversas vezes internado em um manicômio, no Rio de Janeiro, onde veio a morrer. Do que lá sofreu, dá testemunho em dois textos chocantes, Diário do hospício e Cemitério dos vivos, sendo que este teve, há alguns anos, inclusive uma adaptação para teatro.
Coincidentemente (será?), a obra literária de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra e catadora de papel, "descoberta" pelo jornalista Audálio Dantas, começa a ser valorizada e inclusive dela estão sendo publicados os dois volumes inéditos de Casa de alvenaria. Ou seja, Classe cordial, com sua ironia direta e cortante, é extremamente bem-vindo, inclusive por ter contado com financiamento da Lei Aldir Blanc, através do Fundo ProCultura e Fundação Marcopolo.
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