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Teatro

- Publicada em 11 de Junho de 2021 às 03:00

Criatividade, cuidado e carinho

Antonio Hohlfeldt
A Lei Aldir Blanc tem permitido algumas propostas alternativas, absolutamente criativas e admiráveis que, certamente, em futuro próximo, ajudarão a modificar e renovar a própria linguagem das artes cênicas. É o caso da instalação Edifício Cristal, no térreo da Casa de Cultura Mario Quintana.
A Lei Aldir Blanc tem permitido algumas propostas alternativas, absolutamente criativas e admiráveis que, certamente, em futuro próximo, ajudarão a modificar e renovar a própria linguagem das artes cênicas. É o caso da instalação Edifício Cristal, no térreo da Casa de Cultura Mario Quintana.
O projeto pode ser visitado diariamente, em horários pré-agendados. A "visita" dura pouco mais de meia hora, pois o espectador, dispondo de fones de ouvido, colocar-se-á diante de uma cristaleira onde foram dispostos dez apartamentos, dois por andar. As histórias dos moradores de cada um destes apartamentos são sinteticamente apresentadas, como em minicontos, acrescentando-se, ainda, um momento especial, que faz o arremate e o enlace entre algumas dessas histórias e o que ocorre no "corredor" do prédio, entre o terceiro e o quarto andar.
O projeto original é da diretora Liane Venturella e contou com textos dela mesma (a grande maioria), do ator Nelson Diniz e do também diretor Carlos Ramiro Fensterseifer. Os três, mais a produtora e atriz Letícia Vieira (uma surpresa) são os narradores em off destas histórias, muito diferentes entre si, permitindo que aquele microcosmo do edifício seja a metáfora do mundo contemporâneo. Graças à produtora Letícia, tive acesso aos materiais de produção e aos textos integrais, o que mais aumentou minha admiração e deslumbramento pelo projeto, pois evidencia criatividade, cuidado e carinho na sua elaboração e criação, resultando naquele objeto-vivo-pulsante que o visitante terá a sua frente, e cuja vitalidade se revela a partir do momento em que se aperta um dos botões de cada apartamento. Do térreo para o alto, à direita, o espaço do síndico, bom sujeito até que o surgimento da pandemia o transforma num carcereiro impiedoso, lembrando de perto o projeto do panóptico de Jeremy Bentham.
Ao lado, mora Arquimedes, sujeito de meia-idade que, em algum momento, divorcia-se e resolve "viver nova vida", quando é apanhado pelo distanciamento social decretado pela pandemia. Arrependido e solitário, tenta corrigir os rumos. Nos apartamentos do primeiro piso, há um estranho vizinho que está sempre a promover obras no interior do imóvel, sem que ninguém as veja ou compreenda. A seu lado, ao visitar a mãe, cuja cuidadora foi dispensada pela pandemia, a filha é obrigada a permanecer ali. Passa a mudar compulsivamente as cores das paredes, criando crescentes alienações na mãe, que se desconcerta. No piso superior, o jovem casal que inventa "dramatizações" para alimentar suas relações, isolados que estão em home office.
Do outro lado, talvez a figura mais dramática da série, Dona Alegria, pretensamente amada por todos. Mas cujo desaparecimento não mobiliza ninguém, nem mesmo quando ela deixa de pegar as compras que lhe são depositadas à porta do apartamento. Este momento talvez seja o mais evidenciador do egoísmo e do individualismo a que estamos votados no atual momento. No quarto piso, temos uma família formada por Lenah, Lucia e Paulo, que resolvem adotar duas crianças. É uma bela história sobre a renovação do conceito de "família", apresentada com simplicidade e naturalidade. Em contraste, temos Anselmo, professor universitário que passa a vida a juntar dinheiro para viajar para a Europa, mas sempre sozinho. Sua única visitante, quando volta, é Dona Alegria, que admira as fotografias. No andar superior, um solitário e frustrado escritor de sucesso; sendo que no apartamento do lado mora o síndico, que começa a murchar e a morrer no exato primeiro dia em que vive seu aviso prévio da função que sempre desempenhara no imóvel. A tudo isso, a iluminação de Ricardo Vivian, a cenotécnica de Matheus Grimm e a música de Angelo Primon dão vitalidade e concretude. A meticulosidade das miniaturas, a engenhosidade da utilização do armário-cristaleira (que já motivara Liane em espetáculo anterior, mas com atores), e a síntese das narrativas, é surpreendente.
A pandemia, na verdade, é apenas o motivo revelador de tudo o que ali se conhece e revela. Pode-se pensar em pequeninas epifanias. Ao contrário de espetáculos lamentáveis a que se dão os personagens dos reality shows atuais, encontramos aqui sentimentos profundamente humanizados, mesmo quando em suas angústias, farsas e frustrações.
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