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Teatro

- Publicada em 05 de Março de 2021 às 03:00

Dois espetáculos de militância com resultados opostos

Antonio Hohlfeldt
Dois dos espetáculos apresentados durante a mostra Cura de Artes Cênicas Negras, em dezembro de 2020, em Porto Alegre, têm fortemente em comum suas perspectivas absolutamente pessoais no que diz respeito à criação dos mesmos. Estou falando de Peça, que é uma performance, de pouco mais de 15 minutos, concebida, dirigida e interpretada por Rita Rosa Lende, que ainda responde pela trilha sonora (na verdade, não me parece ser uma trilha original e, sim, a escolha de uma trilha) e o figurino; e de O muro, que também tem concepção, performance e edição (de vídeo) de Denilson Tourinho.
Dois dos espetáculos apresentados durante a mostra Cura de Artes Cênicas Negras, em dezembro de 2020, em Porto Alegre, têm fortemente em comum suas perspectivas absolutamente pessoais no que diz respeito à criação dos mesmos. Estou falando de Peça, que é uma performance, de pouco mais de 15 minutos, concebida, dirigida e interpretada por Rita Rosa Lende, que ainda responde pela trilha sonora (na verdade, não me parece ser uma trilha original e, sim, a escolha de uma trilha) e o figurino; e de O muro, que também tem concepção, performance e edição (de vídeo) de Denilson Tourinho.
Enquanto Peça é uma performance coreográfica, que conta com projeções cinematográficas sobre o corpo da intérprete, sobrepondo-se a ela, com uma narrativa que selecionou partes de filmes documentários cujas narrativas são todas em inglês e em que depois a própria intérprete também discursa em inglês; O muro é uma performance dramática, ou como quer seu criador, uma "panfletagem" que ele nega ser teatro e nisso insiste, enquanto lê notícias a respeito de assassinatos recentes de negros, no Brasil e depois faz a dramatização de um depoimento de Cauã Almeida, com o qual ele se identifica absolutamente, presentificando-o, por isso.
Peça, com este nome tão genérico, parte de uma boa ideia: no corpo da performer está inscrito o conjunto de sofrimentos vividos por sua raça, coletivamente, e por ela mesma, individualmente considerada. Da montagem de imagens e de discursos que se projetam, podemos entender a aproximação que se faz entre o corpo negro e o corpo animal (a imagem mostra-nos porcos), desprezado, desqualificado e reificado. A performer veste uma esvoaçante bata branca e seu corpo, à exceção do rosto, está pintado de branco, num processo que talvez reflita uma passagem do discurso, a respeito das categorias que se reconhecem, do "absolutamente preto ao absolutamente branco", com todas as suas tonalidades.
O espetáculo, gravado por Camila Figueiredo, ocorre em espaço fechado de um palco de teatro e se encerra com uma projeção do desfile de algumas figuras masculinas que parecem entrar em sua vagina, num eterno retorno ao útero materno. No entanto, quer porque o texto vem em inglês (inclusive com versão de João Kowaks de Castro), quer porque estas passagens em inglês são demasiadamente longas, em relação à duração do espetáculo, o resultado final fica confuso: a opção pelo inglês é para comercialização a posteriori? O inglês é para evidenciar a dominação colonialista? Confesso que fiquei sem respostas e sem entender. O espetáculo acaba abruptamente e me parece necessitar de uma melhor definição de objetivo.
O muro, ao contrário, com filmagem de Camila Figueiredo, é extremamente bem concebido e realizado. O performer, fora de quadro, vai pedindo licença, enquanto a câmera permanece estática, em plano plongé (inclinado para baixo).
Estamos em uma viela ladeada por dois altos muros caiados de branco. O performer então aparece: sem camisa, calça jeans, sacola às costas, está panfletando, como ele explica. E imediatamente esta ação se torna uma metáfora, já que ele acrescenta: não é teatro, é panfletagem... Aí está uma ideia clara e objetivamente concretizada da concepção de um trabalho.
O performer passa a ler manchetes que referem assassinatos de negros, em 2006, 2013, 2016, 2017... Depois, cita Luther King e a conhecida frase "I have a dream", passando imediatamente a ler e dramatizar o depoimento de Cauã Almeida, chamado pela manchete "Além de preto, viado...", com a qual o narrador se identifica, dizendo que é seu próprio caso, ou seja, a evidente e eficiente busca da generalização e tipificação. O personagem relembra quando foi flagrado pulando o muro de casa porque esquecera as chaves, por PMs, e depois, quando sofreu uma abordagem, em plena luz do dia, em uma parada de ônibus. Nos dois casos, a situação se repete: desqualificação pela negritude e pela identidade sexual.
O trabalho, feito na rua, a céu aberto, tem unidade, tem uma trilha sonora excelente e criativa, contagiante, que marca o ritmo da narrativa, e se encerra com a reiteração de se tratar de panfletagem, e não de teatro. A última imagem é dada pela câmera, que fecha num adesivo da roupa do performer: "Pelo direito de amar e de existir". Um belo trabalho.
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