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Teatro

- Publicada em 05 de Fevereiro de 2021 às 03:00

A condição negra e suas consequências

Antonio Hohlfeldt
No âmbito da Cura - I Mostra de Artes Cênicas Negras de Porto Alegre, que ocorreu virtualmente entre 2 e 7 de dezembro do ano passado, dois dos espetáculos apresentados, ambos já estreados anteriormente, foram A mulher arrastada e Corpos ditos. Vamos nos ocupar destes dois trabalhos, hoje.
No âmbito da Cura - I Mostra de Artes Cênicas Negras de Porto Alegre, que ocorreu virtualmente entre 2 e 7 de dezembro do ano passado, dois dos espetáculos apresentados, ambos já estreados anteriormente, foram A mulher arrastada e Corpos ditos. Vamos nos ocupar destes dois trabalhos, hoje.
A mulher arrastada enfoca caso verídico, ocorrido na manhã de 16 de março de 2014, na favela do Morro de Congonha, no Rio de Janeiro, quando uma mulher negra, pobre, semianalfabeta, mãe de 4 filhos e que tinha mais 4 filhos adotivos (sobrinhos), saiu para comprar pão, em pleno domingo. Ela foi encontrada por uma patrulha da Polícia Militar e executada sumariamente. Agonizante, seu corpo foi atirado num camburão, cuja porta traseira se abriu e o corpo da moribunda foi arrastado por quase meio quilômetro, até o hospital, onde chegou morta. O título da obra reflete o que seria o desejo da mulher assassinada: deixar de ser, apenas, a "mulher arrastada", como os mídias então a trataram, e reencontrar seu nome (sua identidade), Cláudia Silva Ferreira.
A escritura de Diones Camargo devolve a voz à mulher, permitindo-lhe o relato dos acontecimentos, suas reflexões a respeito do fato e, sobretudo, sua vontade de ser devidamente tratada e identificada enquanto individualidade. Ao mesmo tempo, o contraponto aparece na voz do militar a quem compete dirigir o Inquérito Policial Militar (IMP), diante da repercussão que o caso alcançou, e que evidencia total desrespeito e despreparo para com a situação, não considerando a vítima, em nenhum momento, como um ser humano.
O texto de Diones Camargo foi classificado como manifesto. A direção de Adriane Mottola concretiza a contundência do texto e a interpretação de Celina Alcântara mereceu o prêmio Açorianos de melhor atriz, naquele ano.
Na versão da Cura, temos uma abertura modificada, para se adaptar à linguagem digital, mas em tudo o mais o espetáculo segue a montagem original, asfixiante, centrada na figura da mulher que, na primeira cena, aparece numa mesa de ferro (do necrotério?). A peça, neste sentido, funciona como a autópsia do caso. Diones Camargo mostra sua competência de dramaturgo, pois coloca dois monólogos que, em momento algum se cruzam, a não ser para a percepção do espectador. É um dos trabalhos mais significativos do teatro porto-alegrense dos últimos anos e ratifica a excelência de dramaturgo de seu autor.
Corpos ditos, por seu lado, é idealizada por Bruno Fernandes e Silvana Rodrigues, que respondem também pela direção do espetáculo, que tem, como elemento de linguagem fundamental, a edição de imagens de Marina Kerber, pois foi idealizado para as plataformas digitais.
O espetáculo também se constitui de uma série de monólogos de personagens variados que, sem dialogarem entre si, com a mediação da câmera, dialogam com o espectador, a partir de textos de, dentre outros, Aimé Césaire, Abdias do Nascimento, Elza Soares, Jojo Maronttinni, Viola Davis, etc., refletindo, não só a respeito da condição do negro na atual sociedade brasileira, quanto a história e as violências e consequências de sua escravização, arrancados da África, transplantados geográfica e culturalmente, proibidos e cerceados de seus costumes, obrigados a assumirem novas práticas e outros valores, ao longo dos séculos.
A produção, com uma câmara portátil, foi realizada em meio a praças e ruas de Porto Alegre, no interior de apartamentos dos próprios intérpretes, e se organiza em diferentes blocos que trazem reflexões múltiplas do presente do cidadão negro contemporâneo em meio aos preconceitos brancos que os rodeiam, cerceiam e desqualificam.
Um elenco numeroso, formado por Bruno Cardoso, Camila Falcão, Kyky Rodrigues, Laura Lima, Manuela Miranda e Thiago Pirajira mostram perfis e personalidades variadas, discutindo múltiplas perspectivas que revelam a riqueza e a amplitude da cultura negra, em si mesma, e em sua concretude, na sociedade brasileira. O espetáculo, ao mesmo tempo em que sublinha a importância da tradição, evidencia a cotidianidade de tais heranças.
 
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