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Teatro

- Publicada em 22 de Janeiro de 2021 às 03:00

Retorno ao espetáculo de eras primitivas

Antonio Hohlfeldt
As sociedades primitivas, cujo cotidiano estava vinculado aos ritmos da natureza, eram regrados a partir da religião, que buscava interpretar e compreender aqueles sinais naturais que orientavam o cotidiano. O calendário estava marcado pelo tempo do plantio e da colheita; os invernos, depois do plantio, significavam a redução das pessoas às suas casas; no verão, pelo contrário, aproveitava-se a oportunidade que o meio-ambiente oferecia para dele se desfrutar. Saía-se para a rua. Convivia-se.
As sociedades primitivas, cujo cotidiano estava vinculado aos ritmos da natureza, eram regrados a partir da religião, que buscava interpretar e compreender aqueles sinais naturais que orientavam o cotidiano. O calendário estava marcado pelo tempo do plantio e da colheita; os invernos, depois do plantio, significavam a redução das pessoas às suas casas; no verão, pelo contrário, aproveitava-se a oportunidade que o meio-ambiente oferecia para dele se desfrutar. Saía-se para a rua. Convivia-se.
Havia, por isso mesmo, dois tipos de regras, a privada e a familiar, conforme o Direito romano consagrou. A maioria dos ritmos cotidianos estavam vinculados à coletividade, até porque as atividades sociais eram regradas segundo o sexo e a idade das pessoas. Conforme as possibilidades de cada pessoa, ela dava o seu quinhão de contribuição ao grupo social.
Por isso, não havia exatamente uma separação entre a vida religiosa e a vida leiga: tudo o que acontecia, a partir da natureza (o conceito de "physis" dos gregos), era também o que correspondia a uma "vontade" maior, vontade esta traduzida enquanto um ou mais deuses.
Eis porque a origem do teatro, entre os gregos, eram, primitivamente, atividades ritualísticas e, por isso mesmo, religiosas. Havia uma espécie de sacerdote que comandava aquelas práticas. Ele representava e interpretava as tradições, que eram renovadas e relidas conforme os tempos se sucediam. E eis que, em algum momento, este "sacerdote" transformou-se num "personagem" sobre cujas ações a comunidade terminava por discutir, concordando ou discordando de suas decisões e iniciativas, libertando-se do simples cumprimento do ritual e inovando em suas ações. É assim que nasce o teatro ocidental. Primeiro, foi apenas um intérprete (Ésquilo), mas, à medida em que as sociedades foram se tornando mais complexas, havia que representar diferentes valores e sentimentos, e surgiram, em consequência, o segundo (Sófocles) e o terceiro personagens (Eurípides), enquanto o coro diminuía de tamanho mas não desaparecia, necessariamente. O indivíduo acabava por se diferenciar claramente do coletivo e, por isso, os formatos dos espetáculos também se diversificaram.
Muitos estudiosos, como o francês Roger Gerard-Schwartzenberg (1943), que experimentaram a atividade política e sobre ela refletiram teoricamente, consideram-na enquanto um grande jogo de cena, um espetáculo. Schwartzenberg chegou a escrever um belo livro a respeito do tema, O Estado espetáculo (1977), traduzido também no Brasil, em que ele considera esta perspectiva. Schwartzenberg não considera necessariamente fraudulento este jogo, mas em sua obra, e a partir de sua própria experiência, trata de compreendê-lo.
Ora, acompanhando com enorme tristeza e certa melancolia os acontecimentos políticos dos últimos anos no Brasil, sempre me vem à lembrança esta obra com que, aliás, costumo trabalhar em minhas aulas de pós-graduação. No Brasil, nos últimos anos, os discursos, quando transformados na prática, depois de gerarem fortes expectativas, foram frustrantes. Isso possibilitou o surgimento dos movimentos de contrapartida. Nesta disputa, infelizmente, distanciamo-nos da perspectiva aristotélica de que a política (a administração da pólis/a cidade) deve servir ao bem comum, porque isso gera a felicidade (não apenas individual, quanto coletiva), que deveria ser o objetivo maior da atividade política.
A descrença atual na atividade política, em última análise, advém deste contexto: o jogo está sendo jogado, não com a preocupação pelo coletivo mas, sim, pela busca da ocupação pura e simples dos espaços (não há espaço vazio na política). O resultado é este non-sense a que temos assistido e, às vezes, sendo obrigados a participar. Uma vacina não serve mais para salvar vidas, mas para lançar um futuro candidato. A ciência é subjugada pela ilogicidade da paixão partidária e/ou ideológica. E todos nós, de certo modo, voltamos àquelas eras primitivas, em que nos tornamos dependentes, não das forças da natureza, benevolentes, mas de forças ocultas e ameaçadoras, às quais não compreendemos mas que, por isso mesmo, nos amedrontam permanentemente. Regredimos, culturalmente, a uma era primitiva e irracional.
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