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Teatro

- Publicada em 10 de Dezembro de 2020 às 21:11

A única peça dramática de Clarice Lispector

Antonio Hohlfeldt
Registrei, na coluna da semana passada, minha vontade de ligar a prosadora Clarice Lispector à dramaturgia. Neste processo, descobri sua única obra dramática, uma peça relativamente curta, de apenas 14 páginas, mas que, não obstante, trabalha com 13 personagens "ou vozes", como registra o crítico norte-americano Earl E. Fitz, o primeiro a prestar atenção nesta obra que, produzida nos primeiros anos de formação da escritora e assim publicado, foi por ela considerado obra menor e, neste sentido, relegado ao ostracismo até depois de sua morte, quando reencontrou espaço nas páginas do volume intitulado Outros escritos (Rocco, 2005).
Registrei, na coluna da semana passada, minha vontade de ligar a prosadora Clarice Lispector à dramaturgia. Neste processo, descobri sua única obra dramática, uma peça relativamente curta, de apenas 14 páginas, mas que, não obstante, trabalha com 13 personagens "ou vozes", como registra o crítico norte-americano Earl E. Fitz, o primeiro a prestar atenção nesta obra que, produzida nos primeiros anos de formação da escritora e assim publicado, foi por ela considerado obra menor e, neste sentido, relegado ao ostracismo até depois de sua morte, quando reencontrou espaço nas páginas do volume intitulado Outros escritos (Rocco, 2005).
Para quem não conhece o texto, e provavelmente a maioria dos leitores se encontre nesta situação, tentemos o quase impossível, uma síntese: uma mulher pecadora, adúltera, está condenada à execução numa fogueira, como na época da Inquisição. Um coro de anjos antecipa o acontecimento, ao mesmo tempo em que se refere a eles mesmos como seres que estão prestes a se tornarem crianças, meninos ou meninas, como explicitam, sem saberem a parte que lhes caberá. Existe um sacerdote, que se considera pecador e a quem cabe promover a condenação da mulher, com o quê ele alcança sua redenção; aparecem o Marido e o Amante, uma "criança com sono" e a voz do Povo. A mulher, já condenada, aguarda a execução, que, à maneira da tragédia grega, é apresentada ao espectador através da descrição. À execução da mulher se segue uma espécie de arrependimento tanto do Marido quanto do Amante, e ao final da ação, o nascimento dos Anjos encerra a execução da mulher.
O enredo, assim reduzido, parece confuso, ou talvez pobre, e certamente este tipo de primeira impressão quem sabe tenha induzido a escritora a desistir da obra. Contudo, e curiosamente, na correspondência que ela troca com escritores amigos, como Fernando Sabino e João Cabral de Melo Neto, refere-se à composição como um divertimento e pretende inclusive imprimi-la em cópias reduzidas.
A peça recebeu poucos estudos ao longo dos anos, talvez até por ter desaparecido das edições das obras da escritora, só ressuscitando em 2005. No entanto, dali em diante, verificamos, numa rápida passada pela internet, que há um significativo conjunto de estudos que tratam da peça dramática. Earl E. Fitz já chamava a atenção para questões como a linguagem explorada pela autora, as temáticas aí reunidas, uma experimentação que depois seria desdobrada nos livros subsequentes. O formato da peça relembra os autos medievais, com uma linguagem cerimoniosa, inclusive com o uso da segunda pessoa do plural, na fala dos anjos invisíveis que depois se tornarão as crianças nascituras. Não há dúvida, neste sentido, de se tratar de uma narrativa experimental e exploratória, em todos os sentidos: pela linguagem, porque assume esta formalidade do antigo teatro religioso para tratar de um tema crucial, o adultério feminino. Mas o que interessa mais e faz avultar a importância do texto, é seu posicionamento relativamente vanguardista no tratamento ao tema: ao mesmo tempo em que a mulher está condenada por seu adultério, tanto Marido quanto Amante mantém seus vínculos emocionais com a mesma e, de certo modo, reconhecem que jamais a compreenderam, verdadeiramente, que embora pensassem tê-la conhecido, ela jamais se revelara totalmente a eles. Por consequência, o texto, embora registre a condenação e a execução da mulher, não endossa o pretenso pecado. Pelo contrário, pode-se entender a peça a partir de um paralelismo entre a morte da mulher e o nascimento das crianças como uma espécie de ritual de passagem em que à morte se sucede a nova vida, como se a mulher se transformasse no nascituro. Neste sentido, Clarice Lispector assume um posicionamento claramente feminista bem antes de que, ao menos no Brasil, se discutisse este tipo de assunto.
Seja como for, é lamentável que não tenhamos tido, até o momento, ao menos que eu saiba - e nada encontrei no livro de André Luís Gomes, que mencionei na semana passada - qualquer montagem do texto. Fica, aqui, uma sugestão, sobretudo ao nosso DAD e àqueles cursos de formação de atores que temos na cidade. Só assim poderemos, a partir da cena, ter melhor avaliação a respeito da eficiência da proposta dramática da escritora.
 
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