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Teatro

- Publicada em 18 de Setembro de 2020 às 03:00

A atualidade da dramaturgia de Oswald de Andrade

Antonio Hohlfeldt
Pela sua importância histórica, volto hoje a Oswald de Andrade e sua obra dramatúrgica. A peça O rei da vela, referência de seus textos para o teatro, começa com uma cena que se passa num escritório de usura de Abelardo & Abelardo, no Centro de São Paulo. Há alguns armários de ferro, com gavetas etiquetadas onde se lê: "Malandros", "Impontuais", "Prontos", "Protestados", "Penhoras", "Liquidações", e assim por diante. A cena se inicia com o diálogo entre Abelardo I e um devedor, Manoel Pitanga. A peça se coloca, pois, in media res, isto é, no meio dos acontecimentos. Manoel é devedor, está atrasado e vai pedir mais um tempo para pagar o empréstimo. Já pediu muitos empréstimos, um pagando o anterior que nunca chega a ser quitado. Explica o personagem: "Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui dois anos funcionário da estrada de ferro Sorocabana, O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto. Quando nasceu a menina...". Imediatamente Abelardo I o interrompe porque já o identificou: "Já sei. Está nos "Impontuais" (Abelardo II entrega o dossiê reclamado e sai)". Nesta rápida e contundente cena, Andrade apresenta e sintetiza a situação. Os empréstimos jamais se pagam, tais os juros cobrados. Os devedores perdem tudo. O devedor quer um novo empréstimo, mas não consegue pagar os juros: "O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa..." O cliente, ameaçado, retruca com a lei da usura, o que provoca o furor do credor: "Se fala da lei de usura, estamos com as negociações rotas... Saia daqui! (...) Não me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa, ouviu? A camisa do corpo".
Pela sua importância histórica, volto hoje a Oswald de Andrade e sua obra dramatúrgica. A peça O rei da vela, referência de seus textos para o teatro, começa com uma cena que se passa num escritório de usura de Abelardo & Abelardo, no Centro de São Paulo. Há alguns armários de ferro, com gavetas etiquetadas onde se lê: "Malandros", "Impontuais", "Prontos", "Protestados", "Penhoras", "Liquidações", e assim por diante. A cena se inicia com o diálogo entre Abelardo I e um devedor, Manoel Pitanga. A peça se coloca, pois, in media res, isto é, no meio dos acontecimentos. Manoel é devedor, está atrasado e vai pedir mais um tempo para pagar o empréstimo. Já pediu muitos empréstimos, um pagando o anterior que nunca chega a ser quitado. Explica o personagem: "Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui dois anos funcionário da estrada de ferro Sorocabana, O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto. Quando nasceu a menina...". Imediatamente Abelardo I o interrompe porque já o identificou: "Já sei. Está nos "Impontuais" (Abelardo II entrega o dossiê reclamado e sai)". Nesta rápida e contundente cena, Andrade apresenta e sintetiza a situação. Os empréstimos jamais se pagam, tais os juros cobrados. Os devedores perdem tudo. O devedor quer um novo empréstimo, mas não consegue pagar os juros: "O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa..." O cliente, ameaçado, retruca com a lei da usura, o que provoca o furor do credor: "Se fala da lei de usura, estamos com as negociações rotas... Saia daqui! (...) Não me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa, ouviu? A camisa do corpo".
A ironia do dramaturgo é ferina. Vai nos rins do sistema de exploração usurária. E não adianta o cliente argumentar: "mas eu já paguei mais do dobro do que levei daqui..." e o retruque é imediato: "Me diga uma coisa, Seu Pitanga. Fui eu que fui procurá-lo para assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma redução no capital que eu lhe emprestei?" Se Abelardo I trata com desdém e com desprezo o credor, inverte o comportamento quando recebe a visita de Mr. Jones, um milionário norte-americano com quem Abelardo pretende casar a filha, garantindo, assim, a infinitude de seus negócios. Não dando certo, deixa a filha como herança a Abelardo II, preservando o mesmo negócio.
Oswald de Andrade tem absoluta clareza quanto aos princípios e às regras fundamentais da chamada mais valia. Mais que isso, é capaz de transformar esta consciência numa série de situações dramáticas que são, ao mesmo tempo, críticas e ridículas e que, como resultado, evidenciam as contradições do sistema capitalista, denunciando-as ao espectador. Não o faz, porém, através do discurso, mas da paródia, num tom evidentemente carnavalesco, muitos anos antes que as teorias e as perspectivas críticas de Mikhail Bakhtin se tornassem conhecidas no Brasil.
A encenação de José Celso Martinez Corrêa enfatizou esta linha, o que é corretamente discutido pelo crítico norte-americano David George em Teatro e antropofagia (Global, 1985). Mas o melhor estudo que conheço sobre a dramaturgia de Oswald de Andrade é o livro de Sábato Magaldi, Teatro da ruptura (Global, 2004), que defende ser a dramaturgia do paulistano precedente da criação de Nelson Rodrigues, ao menos, quanto à concepção cênica e modo de compreender as possibilidades de uma encenação teatral. Por isso, seu livro assim se conclui: "Afirmar que o mais criativo conjunto brasileiro da década de 1960 realizou o seu primeiro espetáculo de ruptura e talvez a sua mais original montagem com O rei da vela significa trazer Oswald para os nossos dias" (p. 178). Magaldi acerta em cheio: Oswald de Andrade, nesta peça, é profundamente contemporâneo na escolha do tema, na opção por seu tratamento e, sobretudo, na imaginação de sua encenação. O resto é coisa menor, como as três peças escritas em francês (!!!), Mon coeur balance, Leur âme, ambas em coautoria com Guilherme de Almeida, e Histoire de la fille du roi (publicadas pela Editora Globo apenas em 2003, em edição bilíngue).
 
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