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Teatro

- Publicada em 20 de Março de 2020 às 03:00

Antes do Covid-19, a Guerra do Iraque

Antonio Hohlfeldt
Deve ter sido um enorme esforço a concretização do projeto de montagem da peça Palácio do fim, da dramaturga canadense Judith Thompson, estreada na última quinta-feira, pela Cia. In.Co.Mo.Do.Te, sob a direção de Carlos Ramiro Fensterseifer. A peça, que estreou no Brasil em 2011, com direção de José Wilker, agora recebe esta montagem porto-alegrense, ao que parece com tradução diversa da paulistana, pois vem assinada pelo diretor do espetáculo e pela atriz Liane Venturella, sua intérprete feminina, ao lado de Nelson Diniz, o intérprete masculino.
Deve ter sido um enorme esforço a concretização do projeto de montagem da peça Palácio do fim, da dramaturga canadense Judith Thompson, estreada na última quinta-feira, pela Cia. In.Co.Mo.Do.Te, sob a direção de Carlos Ramiro Fensterseifer. A peça, que estreou no Brasil em 2011, com direção de José Wilker, agora recebe esta montagem porto-alegrense, ao que parece com tradução diversa da paulistana, pois vem assinada pelo diretor do espetáculo e pela atriz Liane Venturella, sua intérprete feminina, ao lado de Nelson Diniz, o intérprete masculino.
Liane tem assinado a direção de vários espetáculos do grupo, mas aqui volta a ser atriz. Uma grande atriz. Nelson Diniz, que admiro no cinema, aqui retorna ao palco, e faz um grande espetáculo. O espaço escolhido não poderia ser mais eficiente na aproximação do trabalho em relação ao espectador que, de certo modo, é tirado da posição relativamente fácil de espectador para o de testemunha, porque é nisso que todos nós somos transformados: e se não nos indignarmos e não os emocionarmos com as situações relatadas/presentificadas à frente de nossos olhos, de certo modo devemos lamentar nossa frigidez e insensibilidade.
O texto está dividido em dois blocos aparentemente incomunicáveis. Na primeira cena, o biólogo galês David Kelly, que teria se suicidado depois de denunciar pública e mundialmente as falsas acusações dos exércitos norte-americano e inglês de que haveria armas de destruição em massa no Iraque, justificando assim sua invasão. Há sérias desconfianças de que Kelly teria sido assassinado por agentes de um dos dois (ou de ambos) os governos. Nesta cena, acompanhamos os minutos finais do cientista, em que ele faz um mea culpa por não ter denunciado mais cedo os massacres perpetrados pelos EUA contra os iraquianos. Mas recorda, ao mesmo tempo, sua decisão corajosa e radical de, enfim, fazer a denúncia, o que deve lhe ter rendido o assassinato.
Na outra metade da encenação, de cerca de hora e meia, e num lado contrário do espaço cênico, como se num outro mundo, o fantasma de uma mulher iraquiana, violada sexualmente inúmeras vezes e depois morta pelos soldados norte-americanos, ao lado de seus filhos, recorda todos os sofrimentos por que passou e, especialmente, as torturas infringidas a seu filho menor, de apenas oito anos de idade. Os detalhes são naturalistas, o público como que ouve, não os gritos, mas os gemidos do menino, obrigado a assistir inclusive, às sucessivas violações da mãe.
Nelson Diniz e Liane Venturella são tão contidos quanto emocionantes. E por isso provocam emoções profundas no espectador, como disse, levado à proximidade de ambos os personagens: é como se a gente estivesse ali, assistindo realmente à morte dele e vislumbrando as humilhações infringidas a ela. A ambientação cênica de Alexandre Navarro Moreira é primorosa, complementada pela iluminação de Nara Maia, a projeção de vídeos editados por Guilherme Carravetta de Carli e a trilha sonora de Angelo Primon. Os figurinos foram criados pela própria Liane e promovem contraste simbólico: o universalismo e certa neutralidade da roupa do cientista e as cores vibrantes e falsamente alegres do xador e a burca, que esconde seu rosto.
O que mais chama a atenção e, por isso mesmo, mais efetiva torna a denúncia, é um certo tom de naturalidade, de aceitação, como uma sina da qual não se pode escapar, que os personagens traduzem em suas falas. A tendência a esta naturalização contrasta com a violência dos fatos rememorados, de modo que logo o espectador é levado a distanciar-se desta naturalização, dando-se conta da violência institucionalizada que, na verdade, está ali sendo denunciada, dirigida contra dois seres humanos que, acima de tudo, evidenciam sentimentos humanos, pelas suas famílias e pelos seus próximos, sejam ou não de sua etnia ou cultura.
O trabalho da Cia. In.Co.Mo.Do.Te. faz jus ao nome do grupo. É um dos espetáculos mais contundentes e um dos textos mais eficientes, dramaticamente falando, a que assisti em muitos anos. Claro que tem de ter estômago para aguentar, mas não vimos, no fim de semana passado, gente querendo ser inoculada pelo Covid-19 só para se tornar semelhante a seu mítico guru?
 
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