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Teatro

- Publicada em 19 de Julho de 2019 às 03:00

Os necessários 'vira-bostas'

Para comemorar os seus 15 anos de existência, o Núcleo de Experimentação e Expansão da Linguagem Cênica (Neelic) produziu o espetáculo Merda!. A expressão é antiga e, de certo modo, institucional no mundo do teatro. Utilizada pelos seus profissionais, quer dizer "boa sorte". Ao assim intitular o novo espetáculo, no entanto, o Neelic promove uma forte ironia porque a realidade que enfoca, o atual contexto brasileiro, nada tem nem de feliz, nem de positivo. Portanto, nada teríamos a dizer como "boa sorte". A expressão "merda!", neste caso, precisa ser tomada no sentido literal, enquanto denúncia, rebeldia, resistência.
Para comemorar os seus 15 anos de existência, o Núcleo de Experimentação e Expansão da Linguagem Cênica (Neelic) produziu o espetáculo Merda!. A expressão é antiga e, de certo modo, institucional no mundo do teatro. Utilizada pelos seus profissionais, quer dizer "boa sorte". Ao assim intitular o novo espetáculo, no entanto, o Neelic promove uma forte ironia porque a realidade que enfoca, o atual contexto brasileiro, nada tem nem de feliz, nem de positivo. Portanto, nada teríamos a dizer como "boa sorte". A expressão "merda!", neste caso, precisa ser tomada no sentido literal, enquanto denúncia, rebeldia, resistência.
Com cerca de uma hora de duração, Merda! foi apresentado na sede do Neelic, no 4º Distrito. É uma casa dos anos 1950, espaçosa, em que o grupo conseguiu organizar espaços para ensaios, criação, guarda de cenários e figurinos etc.
Há, também, o espaço para seus espetáculos, que são sempre intimistas. No caso de Merda!, isso é fundamental para a comunicabilidade do trabalho que reflete a respeito da violência presente no atual contexto da sociedade brasileira, especialmente aquela voltada contra a mulher. Sugerido pelo substantivo do título, uma espécie de barro, feito de borra de café, vai servir para que os intérpretes untem seus corpos. O próprio público, devidamente resguardado por uma longa capa de plástico, também é envolvido por este material, mergulhando, portanto, naquele mesmo universo.
Desirée Pessoa assina a direção do trabalho e participa da cena, ao lado dos atores Adriano Roman - também responsável pela iluminação -, Rodrigo Santiago e Samuel Oliveira. A dramaturgia deve ter sido desenvolvida pela própria diretora, com o grupo. Temos uma sequência de cenas em que a violência social vai sendo crescentemente explicitada, enquanto se discute o atual contexto nacional. Para a ambientação cênica, Paulo Olivo responde pelo cenário e pelo figurino: macacões que, impecavelmente limpos, no início do espetáculo, são descartados, ao final, pois estão absurdamente sujos, evidente metáfora da atual conjuntura. A trilha sonora é do maestro Luiz André da Silva; provocante, impactante, aprofunda o tensionamento da encenação.
Desirée tem desenvolvido quase sempre espetáculos em que prefere dirigir, sem estar em cena. Ou busca outra direção, quando atua. Nesse caso, porém, ela teve a coragem de se colocar diretamente no espetáculo, enfrentando lado a lado os três atores: o espetáculo apela ao jogo simbólico para referir situações imediatas que enfrentamos. Nesse sentido, a exemplo do escultor búlgaro Christo, que promove enormes empacotamentos de prédios, quadras inteiras, parques e objetos urbanos de grandes dimensões, justamente para - com a subtração daquela situação cotidiana a que nos acostumamos e não mais a notamos - chamar a atenção para a mesma, a realizadora busca esse mesmo resultado: numa aparente naturalização da violência, promove sua denúncia, propõe sua repulsa, de modo a que não a aceitemos com naturalidade, como um aspecto normal da realidade cotidiana.
Certamente, a expressão "merda!" do título traduz com fidelidade o espetáculo. No início do século XX, alguns jornalistas norte-americanos buscaram denunciar as condições sub-humanas de sobrevivência naquele país. Contra eles se colocou o presidente dos Estados Unidos, pretendendo desqualificá-los, apelidando-os de "muckrackers", os "vira-bostas". Pois foi justamente este jornalismo que ajudou na democratização do país e, hoje, o termo é usado com orgulho por aqueles profissionais que fazem o jornalismo investigativo. O que o teatro de Desirée Pessoa propõe, de certo modo, é isso: mexe na merda para que ela não se naturalize nem seja esquecida. Talvez não faça muito bem ao olhar ou ao "bom gosto". Mas para quem concorda com Guy Débord sobre o fato de que a atual realidade tende a se transformar em puro espetáculo (quanto à falsidade de nossa vida cotidiana), o trabalho ganha sentido sem perder um forte sentido de comunicabilidade: na pequena sala em que cabem em torno de 20 espectadores, a cada vez, não havia lugar sobrando. Isso é bom sinal: mostra que ainda não ficamos insensíveis nem refratários à reflexão. Graças a gente como os integrantes do Neelic.
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