Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

- Publicada em 18 de Janeiro de 2019 às 01:00

Em Estocolmo, a última casa de August Strindberg

Mesa de trabalho de August Strindberg

Mesa de trabalho de August Strindberg


ANTONIO HOHLFELDT/ESPECIAL/JC
Subindo a rua Tegner, chega-se, em pleno Centro de Estocolmo, ao prédio 85 da rua Drottninggatan, que com ela faz esquina. É um prédio comum, que passa despercebido pelo transeunte, a não ser que ele esteja procurando este endereço. Ainda assim, hoje em dia, é difícil percebê-lo, salvo se levantarmos um pouco a cabeça. Então, veremos uma esfinge preta, como uma sombra chinesa, dependurada a partir da parede do prédio, indicando que ali se situa o Museu August Strindberg.
Subindo a rua Tegner, chega-se, em pleno Centro de Estocolmo, ao prédio 85 da rua Drottninggatan, que com ela faz esquina. É um prédio comum, que passa despercebido pelo transeunte, a não ser que ele esteja procurando este endereço. Ainda assim, hoje em dia, é difícil percebê-lo, salvo se levantarmos um pouco a cabeça. Então, veremos uma esfinge preta, como uma sombra chinesa, dependurada a partir da parede do prédio, indicando que ali se situa o Museu August Strindberg.

Homem de seu tempo

Strindberg não foi apenas o mais famoso dramaturgo sueco do fim do século XIX e início do século XX, mas um intelectual ativo, por isso mesmo polêmico, que provocou emoções contraditórias em seus contemporâneos e conterrâneos. Hoje em dia, algumas de suas peças de teatro - mais de 60 - continuam sendo representadas mundialmente, ainda que nenhuma supere Senhorita Júlia, referência do teatro naturalista na Europa, datada de 1888, mas que funciona como uma espécie de documento a respeito da luta desenvolvida pelas mulheres para o seu reconhecimento e valorização social.
No Brasil, Strindberg é um nome praticamente desconhecido, salvo em alguns cursos de Literatura ou disciplinas de Literatura dramática. Mas quem se depara com os escritos de Strindberg, não deixa de levar um choque. Ainda no semestre passado, lecionando literatura dramática, trabalhei com Senhorita Júlia e pude confirmar o efeito que a escrita de August Strindberg provoca. Imagine-se ao final do século XIX, com, de um lado, todos os preconceitos relativos a militarismo, nacionalismo e feminismo e, de outro, toda a expansão industrialista e tecnológica que o continente europeu experimenta, aí incluindo-se a Suécia.

Na Torre azul

O apartamento de Strindberg, ou, como ele o chamava, a "Torre azul", era uma construção extremamente moderna para a época. Pertencia a um hotel, que ficava no sexto e último andar do prédio. Strindberg alugava todo o quinto andar. O apartamento não era grande: uma sala de entrada era também seu quarto; uma sala de jantar, com armários e uma mesa central com cadeiras e poltronas, onde o escritor recebia convidados e promovia soirées musicais, acompanhado do irmão Axel, que era pianista, sobretudo em homenagem a Beethoven, a grande admiração musical de Strindberg, que era músico amador: desde jovem tocava guitarra, flauta e compunha pequenas partituras. Na sala, ainda se observam figuras de Goethe e de Schiller, os dois líderes do romantismo alemão, igualmente valorizados pelo dramaturgo sueco.
A visita que se pode fazer à casa de Strindberg evidencia uma construção de formato circular, ou seja, entra-se por um lado e sai-se pelo outro, passando-se sucessivamente de uma peça para a outra. No centro, está o lavabo, grande novidade da engenharia da época, assim como havia dois telefones na casa - um com linha exclusiva para o hotel acima - e outra com linha externa: ao lado, vemos uma lista dos números mais usados pelo escritor. Outras tecnologias modernas de então: luz elétrica, campainha ligando o apartamento ao térreo, de modo que a visita podia se anunciar desde a rua; e elevador pantográfico, a quintessência da acessibilidade facilitada a uma construção deste tipo.
A peça seguinte é uma sala de estar, dividida parcialmente por uma vidraça que permite a criação de um espaço isolado, o gabinete de trabalho de Strindberg. Ali vemos algumas prateleiras com livros. Sua biblioteca, com cerca de 3 mil volumes, hoje ocupa o sexto andar do prédio - onde estava o hotel - e pode ser visitada mediante hora marcada e com guia.
A última sala é uma espécie de vestíbulo: pequeno, serve certamente para se colocar/tirar casacões e calçados, sobretudo na época de inverno, em que a neve se acumula nas ruas e o frio normalmente cai a alguns graus negativos. Como o apartamento também tinha calefação - coisa rara na época - imagine-se que esta peça de passagem é fundamental para o bem-estar do morador.

O contraditório artista

Strindberg dizia-se "filho de uma empregada", referindo-se a sua origem: seu pai era um comerciante pequeno-burguês que se casou com a empregada da casa. Deste modo, desde cedo, o artista desenvolverá um certo sentimento de marginalidade e tendência de contestação ao status quo vigente, em vários campos da vida cotidiana e cultural, o que provocará admiração e restrição, chegando mesmo a um processo criminal, quando, em 1884, Casados acaba atacando temas considerados blasfemos pela igreja. Felizmente, foi absolvido. Mas ele nunca se aquietou, e embora muitas vezes controverso, jamais deixou de expressar com clareza suas ideias: foi antifeminista, nos primeiros anos, e claramente feminista, na maturidade; foi antissemita, na juventude, mas valorizou a importância cultural do judaísmo, anos depois: tanto que, quando se entra em sua casa-museu, logo nos deparamos, num dos armários da sala de estar, com um candelabro e outros símbolos judaicos, presentes nesta que foi sua última residência, das mais de 40 em que habitou, ao longo da vida, dentro e fora da Suécia, a partir de 1908, até sua morte, em 1912. Foi neste apartamento, aliás, que recebeu a maior homenagem que uma personalidade sueca poderia receber então: as organizações trabalhadoras, na passagem do 1 de maio de 1912, promoveram um desfile de milhares de pessoas, um quinto da população da cidade de Estocolmo, segundo documentos da época, em sua homenagem, entregando-lhe, ainda, um anti-Prêmio Nobel, em protesto por ele não ter sido indicado para o galardão, pela Academia, no valor de 45 mil coroas. Infelizmente, ele morreu dias depois. Esta manifestação foi o coroamento de outra luta que marcou sua obra: a defesa do socialismo e a valorização do trabalhador que, na época, sofria, não apenas a espoliação da alta burguesia (com uma forte industrialização), quanto era desqualificado pela nobreza e pelas elites econômicas e políticas.

Difícil convivência

Ali, Strindberg viveu seus últimos anos sozinho, não necessariamente solitário. Apesar de seus três casamentos e cinco ou seis filhos, sendo que apenas a filha mais nova frequentava com certa assiduidade esta residência e dela o escritor tem um retrato em sua parede, atestando sua bem-querença, Strindberg cultivava amigos, mas criava ou transformava os amigos facilmente em inimigos, graças à radicalidade de suas posições.
Antimonarquista, antibelicista, socialista, nihilista (leitor e amigo de Nietsche), crítico de Darwin, adversário de Henrik Ibsen, com quem polemizou muitas vezes, não devia ser um sujeito simples de se conviver. Por outro lado, era um curioso nato: trabalhou com alquimia, pesquisou botânica, estudou música, desenvolveu-se nas artes plásticas - pintava e praticava a aquarela, estudou aprofundadamente a fotografia - sobre o que escreveu, teorizou e praticou, era, enfim, um homem de espírito renascentista, curioso e aberto a ideias novas, mas sempre enfático em suas posições, o que provocava reações adversas. Defendia uma Suécia europeia, enquanto muitos defendiam o fechamento das fronteiras do país. Entendia sua parte como parte de um todo do continente e não como uma realidade diferenciada e superior. Valorizou a mitologia e as origens da cultura popular do país, mas ao mesmo tempo combatia frontalmente o conservadorismo.
Nascido a 22 de janeiro (portanto, oportuna esta nossa visita) de 1849, faleceu em 14 de maio de 1912. Foi dramaturgo - atividade que o celebrizou - memorialista, jornalista, ficcionista, criador ativo desde 1869, quando escreveu sua primeira peça de teatro, até 1909, quando produziu seu último texto dramático. Mas não parou de escrever: até os últimos dias, colaborou com jornais, escrevendo crítica de arte (sobretudo de artes plásticas, preconizando valores como a forma, sobre o conteúdo - que anteciparam os horizontes da chamada arte moderna), artigos políticos, sobre religião e literatura.
A dramaturgia lhe deu fama. Duas de suas esposas foram atrizes e para elas chegou a escrever algumas peças. Mas nem todas as suas obras puderam ser apresentadas, em seu tempo, na Suécia, pois foram censuradas. Na sua juventude, por isso mesmo, fundou um grupo alternativo, o Teatro Experimental Escandinavo. Nos últimos anos de vida, diante da negativa de grandes companhias representarem alguns de seus textos, ao lado de August Falck criou o "Teatro íntimo", que estreou, inclusive, Senhorita Júlia, a que outros grupos se negaram representar.
É uma figura do seu tempo e, confesso, a visita à sua casa-museu foi das atividades que mais me gratificaram nesta passagem pela capital sueca.