Em comemoração aos 80 anos do poeta Luiz Coronel, uma série de festividades vêm sendo programadas. Uma das mais interessantes foi a realização do concerto Cantos de Leontina da Dores, com a participação de Fafá de Belém, no Teatro do Bourbon Country. Não foi a primeira vez que este concerto ocorreu, ele está inclusive documentado em um emocionante CD que tenho. Por isso mesmo, queria ver o espetáculo que é uma concepção eminentemente dramática e teatral. Além de Fafá de Belém, especialmente convidada para a ocasião, tivemos a participação sempre elogiável de Renato Borghetti e três bailarinos, com solos e duos, do grupo de Vera Bublitz. A Orquestra Unisinos-Anchieta, regida por Evandro Maté, fez os acompanhamentos, a partir de arranjos de Alexandre Ostrovski Júnior, de invejável inspiração.
Talvez o leitor estranhe: por que esta coluna dá guarida a este espetáculo? Eu responderia que, em primeiro lugar, exatamente porque o espetáculo está pensado mais como um show cênico do que propriamente um concerto. Na verdade, a simples presença de Fafá de Belém em cena transforma qualquer concerto em um show, tal a exuberância de sua persona. Mais que isso, as letras das composições de Luiz Coronel, que encontra complementações extraordinárias nas composições musicais de gente como Marco Aurélio Vasconcelos - na ocasião seu primeiro grande compadre - além de Isabela Fogaça, Marlene Pastro, Airton Pimentel, Raul Ellwanger e Sérgio Rojas, tornam-se poemas dramáticos extremamente contundentes e visualizáveis.
Não é casualidade que o público presente, boa parte de convidados e, portanto, de gente próxima do artista homenageado, podia cantar junto - e assim o fez, quando instado pela intérprete - mas preferia calar-se para desfrutar da performance envolvente daquela que, para muitos de nós, ainda é e sempre será a diva da campanha das Diretas Já.
Luiz Coronel tem uma facilidade espantosa para achar a rima, às vezes pobre pela sua facilidade, mas na maioria, plena de criatividade e de surpresa, que é o que faz a gente admirar o bom poeta. Mais que isso, Coronel é o dono da metáfora e dos símbolos, que ele encontra e renova de maneira muito pessoal em seus poemas. Leontina das Dores, a personagem lembrada naquela noite, tornou-se tão presente entre nós quanto o Campeador de Carlos Nejar, a quem, aliás, há poucos dias, encontramos também em cena, ao lado do filho, Fabrício Carpinejar, em inesquecível espetáculo de poesia entre pai e filho. Somos felizes, os do Rio Grande do Sul que, em registros diferentes, o de Coronel mais popular; o de Nejar mais erudito, dispomos de dois poetas de tal modo inspirados. Na poesia e na música argentina tivemos aquelas figuras estupendas idealizadas pelo poeta Félix Luna e pelo compositor Ariel Ramirez, eternizada na voz de Mercedes Sosa, a respeito da poeta argentina Alfonsina Storni, que se suicidou, em 1938, em Mar del Plata, pelas pressões sociais que sofria. Luna e Ramirez não inventaram a personagem, mas a recriaram; Coronel e Marco Aurélio erigiram a sua invenção num monumento musical inolvidável. Cada um a seu modo, transformaram mulheres mais ou menos anônimas, infelizes em seu tempo, pela incompreensão e pelo preconceito, em símbolos de liberdade e de afirmação. Uma, verdadeira, transfigurada; outra, ficcional, a afirmar-se modelarmente.
Foi inesquecível o concerto, porque, de certo modo, foi como se aquela personagem, que se consubstanciava corporalmente entre todos os que ali estávamos, também reafirmava nosso respeito e nosso reconhecimento quanto ao papel da mulher na sociedade humana, agrade isso ou não a qualquer pessoa, seja ele um simples indivíduo anônimo ou grada autoridade da República. Leontina das Dores, idealizada para festejar, transformou-se, de certo modo, e pela casualidade histórica, num ato de afirmação e que, talvez por isso mesmo, mais emocionou a todos, a começar pela cantora, que não escondeu ter chorado em cena. Para o poeta que tem-se destacado por ser o cantor da mulher sul-rio-grandense, foi, certamente, a melhor homenagem que se poderia encontrar.