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Teatro

- Publicada em 05 de Outubro de 2018 às 01:00

Concentração de temas e reflexão aprofundada

Espetáculo Preto foi apresentado na última semana do Porto Alegre em Cena

Espetáculo Preto foi apresentado na última semana do Porto Alegre em Cena


NANA MORAES/DIVULGAÇÃO/JC
A última semana do Porto Alegre em Cena teve enorme diversidade de espetáculos, tanto em sua origem, quanto em suas propostas. Mas, ao contrário de anos anteriores, cresceu a preocupação com um foco único para a mostra, o que significa selecionar obras que atendam a certas demandas de seus curadores, no caso, questões vinculadas aos preconceitos e à marginalização social.
A última semana do Porto Alegre em Cena teve enorme diversidade de espetáculos, tanto em sua origem, quanto em suas propostas. Mas, ao contrário de anos anteriores, cresceu a preocupação com um foco único para a mostra, o que significa selecionar obras que atendam a certas demandas de seus curadores, no caso, questões vinculadas aos preconceitos e à marginalização social.
Talvez o exemplo mais evidente dessa tendência tenha sido Preto, criação da Cia. Brasileira de Teatro, sob a direção de Márcio Abreu. Preto vem assinada triplamente pelo próprio Márcio Abreu, mais a dramaturga Grace Passô e Nadja Naira. No elenco, além das próprias Grace Passô e Nadja Naira, temos Cássia Damasceno, Felipe Soares, Rodrigo Bolzan e Renata Sorrah, com Rafael Bacelar como Sant by. A cena é simples: uma mesa, ao fundo, com cadeira e lâmpada; mais à frente, à direita, na boca de cena, outra mesa pequena, em que se apresenta um personagem feminino. O personagem à frente convidando os espectadores a subirem ao palco e realocarem a mesa e as cadeiras. Os demais atores, logo se percebe, sentados na primeira fila da plateia, sobem, então, à cena.
A partir daí, durante quase hora e meia, o elenco apresenta diferentes situação que vão, claramente, de paráfrases de textos clássicos a depoimentos quase autobiográficos. O conjunto de falas vai revelando situações-limite de exploração e de violência da contemporaneidade, em especial na sociedade brasileira.
Grace Passô, que tem se sobressaído como uma voz atuante na nova dramaturgia nacional, sempre em defesa da negritude e dos despossuídos, tem uma grande qualidade: ela sabe que a cena teatral não é lugar de discurso, embora possa e deva ser o lugar da denúncia social. Assim, como num debate posterior enunciou Paulo Flores, do grupo Ói nóis aqui traveiz, sua grande contribuição à dramaturgia contemporânea brasileira é a capacidade de criar e inventar modos de dizer e de mostrar, cenicamente trabalhados, jamais esquecendo que se está no teatro e não num comício ou algo parecido. O resultado é um espetáculo que, quer quanto à dramaturgia em sentido estrito, quer enquanto concepção cênica, prende a atenção do público e provoca reações variadas, inclusive a de pessoas que preferem sair do teatro a assistir à encenação.
Um dos elementos mais claramente pontuados pela dramaturgia da obra é a perspectiva autobiográfica: por exemplo, logo no início, Grace Passô como Grace Passô deixa claro que não pretende fazer autobiografia, mas, ao mesmo tempo, faz referências explícitas a suas próprias experiências (dela, sim, mas dela também enquanto personagem). Mais adiante, Renata Sorrah participa de toda uma sequência em que se apresenta uma paráfrase a passagens da As lágrimas amargas de Petra Von Kant, de Fassbinder, que a própria Sorrah encenou, há muitos anos - aliás, espetáculo emocionante, a que assisti em São Paulo e depois ainda no Teatro Leopoldina, aqui em Porto Alegre, mas invertendo os papéis, de modo a repensar a proposta da peça, e assim por diante.
O espetáculo é provocativo, sim, mas é inteligente e sensível. Grace Passô, Márcio Abreu e Nadja Naira sabem que estão fazendo teatro e fazem teatro, com excelente e admirável qualidade.
Outro trabalho que chamou a atenção foi o chileno 40 mil Kms, produzido pelo Teatro Club Social, de Santiago, com dramaturgia de Carlos Aedo Casarino e Maria Luisa Vergara. No elenco, Mayra Padilla, Aída Escudero, Eliana Furman e Ralph Jean Baptiste. Cada ator vive sua autobiografia. Trata-se de quatro imigrantes: uma jovem oriunda da Argentina, outra do México, uma terceira da Espanha e, enfim, o homem veio do Haiti. Os quatro vivem há algum tempo no Chile e enfrentam diferentes problemas de adaptação e de ambientação no novo país. O debate ocorre, justamente, a partir dos motivos que levam alguém a emigrar e, de outro lado, os desafios
Para se reencontrarem nos novos espaços. O roteiro se dá a partir de uma dialogação constante entre os personagens que nem sempre estão de acordo entre si. Esboça-se um Chile menos simpático aos que chegam como migrantes (os mesmos problemas que enfrentamos hoje, no Brasil, em relação mãos haitianos, aos senegaleses e, sobretudo, mais recentemente, com os venezuelanos). Neste sentido, a peça é extremamente oportuna. O espetáculo, de pouco mais de uma hora de duração, utiliza modernas técnicas narrativas, variadas, com projeções de imagens e gravações musicais ou com depoimentos de outros personagens.
Num outro registro, o Grupo Bagaceira, de Fortaleza, encontramos um espetáculo eminentemente poético. Rafael Martins desenvolveu um texto dirigido por Yuri Yamamoto, com assistência de direção do próprio autor, que é interpretado por Samya de Lavor e Tatiana Amorim, sendo Rafael e Rogério atores contrarregras. O enredo apresenta duas mulheres do sertão, mãe e filha (a mãe, aparentemente, está morta, mas continua sobrevivente), chegadas a um determinado local onde se encontra o público, a plateia do espetáculo. A cenografia prevê duas arquibancadas próximas, uma frente à outra, deixando apenas um estreito corredor. No centro de ambas as arquibancadas, espaços que serão ocupados, respectivamente, por mãe e filha. O diálogo avança poeticamente até chegar ao tema da memória. A partir daí, o público é incluído na criação, instado a falar de seus parentes, em especial das mães e, depois, a mostrar fotografias de suas avós. Ao mesmo tempo, são distribuídos papeluchos em que se deve escrever o nome desta avó, cujo neto é depois convidado a falar de sua memória.
A ideia é muito bonita e eficiente: vi gente realmente emocionada ao relembrar seus entes queridos, sobretudo no caso de pessoas que já faleceram. Mas ao mesmo tempo, acho que esta passagem, que ocupa pouco mais da metade do espetáculo, é demasiadamente longa, poderia ser mais curta e alcançaria maior eficiência dramática. De qualquer modo, trata-se de um trabalho muito bonito e que nos leva a uma introspecção importante: em tempos de selfies e imagens de Instagram, a registrarem artificial e exteriormente imagens do que fazemos (como se fôssemos aquilo), a encenação propõe exatamente o movimento contrário: explorar imagens já existentes, devolvendo-lhes vida e sentido, a partir da memória e do sentimento.
Por fim, dentre os tantos trabalhos a que assisti, merece referência outro espetáculo do Ceará, produção do Teatro Máquina, com dramaturgia do grupo, tutoria de Tânia Farias (do porto-alegrense Ói nóis aqui traveiz), intitulado Nossos mortos, que faz uma junção entre a tragédia Antígona, de Sófocles, e um relato a respeito do massacre sofrido pelos camponeses do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, descendentes dos fugitivos do grupo liderado por Antonio Conselheiro em Canudos, conforme Os sertões, de Euclides da Cunha. O massacre do Caldeirão, por outro lado, também tem um registro emocionante e emocionado do romancista Cláudia Aguiar, descendente de um daqueles massacrados. Na peça, Ana Luiz Rios e Loreta Dialla apresentam litanias aos seus mortos. Neste sentido, a peça se constitui numa espécie de ritual religioso que, ao mesmo tempo em que relata e denuncia, chora e enaltece os desaparecidos, evidenciando que, tanto o assassinato de Antígona, quando a morte dos camponeses do Caldeirão obedecem a uma mesma lógica do autoritarismo do poder político. O espetáculo emociona pelas interpretações, valorizadas pela trilha sonora de Ayrton Pessoa Bob, interpretada ao vivo, por um conjunto de percussão e cordas, incluindo a tradicional rabeca e as vozes das duas atrizes.
Em resumo, a segunda semana do Porto Alegre em Cena foi tão densa e, ao mesmo tempo, tão variada quanto a primeira. O menor número de espetáculos e uma curadoria mais centralizada em alguns temas e seus desdobramentos permitiu uma imensamente maior unidade à mostra, que ganhou em qualidade e permitiu, certamente, reflexões mais aprofundadas, distanciando-se um pouco da simples curiosidade em torno de espetáculos e realizadores de outros centros de produção. Tornou-se, assim, mais oportuno e politicamente produtivo.
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