Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Cinema

- Publicada em 10 de Dezembro de 2021 às 03:00

Irmãos

Hélio Nascimento
Se o filme Ataque dos cães não é uma obra-prima, está perto disso. A diretora neozelandesa Jane Campion, que ficou famoso pela realização de O piano, em 1993, oferece ao espectador uma demonstração de segurança narrativa como poucas vezes se tem visto ultimamente. Neste filme ambientado na década de vinte do século passado, quando as marcas de uma época já eram distantes daquelas que serviram de cenários para muitos westerns clássicos, o filme ostenta algumas das características que definiram o gênero, mas delas diverge radicalmente ao retirar de cena o justiceiro e colocar em seu lugar uma figura que ostensivamente é um resistente diante dos novos tempos e da marcha da civilização. Se ele não chega a ser a figura de John Wayne que utiliza as armas para impor a civilização em O homem que matou o facínora, de John Ford, sabendo que assim está decretando seu fim, é, sem dúvida, até pela evidência de ter sido uma espécie de modelo para Campion e para o ator Benedict Cumberbatch, uma referência direta ao Lee Marvin naquela, esta sim, obra-prima. Mas o filme, baseado num livro de Thomas Savage, expõe com rudeza o choque entre as forças disciplinadoras e os valores cultuados pelos que encontram na rudeza uma forma de ocultar a parte que permanece como um segredo a ser mantido a todo custo. Eis um relato sobre a repressão exercida pelo próprio indivíduo, simbolizada no trabalho de Campion pela cena da castração, que resume a trajetória do irmão que idolatra uma figura do passado, que parece um herói do western e exerce como se fosse um fantasma opressor um poder decisivo no comportamento de um homem que renunciou utilizar valores culturais para se transformar em algo que sintetiza revoltas diante de costumes e procura em manifestações de primitivismo maneiras de se impor diante de todos.
Se o filme Ataque dos cães não é uma obra-prima, está perto disso. A diretora neozelandesa Jane Campion, que ficou famoso pela realização de O piano, em 1993, oferece ao espectador uma demonstração de segurança narrativa como poucas vezes se tem visto ultimamente. Neste filme ambientado na década de vinte do século passado, quando as marcas de uma época já eram distantes daquelas que serviram de cenários para muitos westerns clássicos, o filme ostenta algumas das características que definiram o gênero, mas delas diverge radicalmente ao retirar de cena o justiceiro e colocar em seu lugar uma figura que ostensivamente é um resistente diante dos novos tempos e da marcha da civilização. Se ele não chega a ser a figura de John Wayne que utiliza as armas para impor a civilização em O homem que matou o facínora, de John Ford, sabendo que assim está decretando seu fim, é, sem dúvida, até pela evidência de ter sido uma espécie de modelo para Campion e para o ator Benedict Cumberbatch, uma referência direta ao Lee Marvin naquela, esta sim, obra-prima. Mas o filme, baseado num livro de Thomas Savage, expõe com rudeza o choque entre as forças disciplinadoras e os valores cultuados pelos que encontram na rudeza uma forma de ocultar a parte que permanece como um segredo a ser mantido a todo custo. Eis um relato sobre a repressão exercida pelo próprio indivíduo, simbolizada no trabalho de Campion pela cena da castração, que resume a trajetória do irmão que idolatra uma figura do passado, que parece um herói do western e exerce como se fosse um fantasma opressor um poder decisivo no comportamento de um homem que renunciou utilizar valores culturais para se transformar em algo que sintetiza revoltas diante de costumes e procura em manifestações de primitivismo maneiras de se impor diante de todos.
Uma das cenas iniciais, a do restaurante da viúva, no momento auxiliada pelo filho, sintetiza o conflito que depois será exposto de forma ainda mais clara através da trajetória dos demais personagens. Os ornamentos colocados nas mesas, feitos pelas mãos de um futuro cirurgião, são ridicularizados, de uma forma a causar um desequilíbrio emocional na mãe e, por uma certa ironia, terminará sendo o fato que permitirá uma aproximação a um casamento que terminará causando no personagem de Cumberbatch um processo que terminará numa conclusão inesperada, mas que antes do final será por uma série de acontecimentos indiscutivelmente reveladora. Há, no cenário habilmente utilizado pela diretora, uma espécie de túnel oculto que duas vezes é revelado ao espectador e que deixa evidente que a admiração pela figura mítica não é apenas uma fixação em tempos passados. A figura do irmão revoltado não chega a ser totalmente revelada ao espectador, pois falta a origem do abandono da cultura por ele rejeitada. Mas a aproximação ao jovem estudante, a primeira vítima, no filme, de sua agressividade, não deixa de ser, também, uma forma de revelar seu passado, a explicitação de algo por ele renegado. Assim, há uma ligação entre duas cenas: a da castração do touro e a vivissecção do coelho. Uma evidência, também, que a civilização não teve no seu processo de amplidão como evitar métodos assemelhados a sacrifícios primitivos.
Em outro momento, a sequência da visita do governador, Campion retoma o tema de seu filme mais famoso. O tema do piano reaparece, mas naquele momento a música, este outro elemento importante no filme -o personagem principal também toca um instrumento- não se impõe e o primitivismo termina ressurgindo no final de tal trecho. Negando-se a tornar explícito através de cenas fáceis o sentido de seu filme, a cineasta escolhe o caminho da sutileza e assim se afasta de concessões e superficialidades. As montanhas distantes formam um enigma e um cenário inacessível. Um olhar rigoroso talvez permita ao espectador uma definição depreciativa ao contemplar a cena final. A família humana então reconstruída, pode, no entanto, materializar nas imagens, depois do final da revolta e do insulto, um epílogo no qual as leis civilizatórias são vitoriosas, depois que respostas a repressões diversas são caladas.
 
Conteúdo Publicitário
Leia também
Comentários CORRIGIR TEXTO