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Cinema

- Publicada em 05 de Março de 2021 às 03:00

Fantasia e realidade

Hélio Nascimento
Numa conferência realizada em Lisboa, em 13 de abril de 1946, sobre o tema A ideia do teatro, o pensador espanhol Ortega y Gasset fez uma referência ao célebre episódio do Mestre Pedro no Don Quixote de Cervantes. Naquele trecho o protagonista investe contra os bonecos de um teatro de marionetes para salvar uma princesa que está sendo perseguida pelos mouros. Com isso destrói os bonecos e interrompe o espetáculo, enquanto esbraveja contra os perseguidores. Ortega assinala então que, ao contrário do que alguns possam pensar, tal atitude revela uma perda do sentido do irreal, da fantasia, da encenação e não da realidade.
Numa conferência realizada em Lisboa, em 13 de abril de 1946, sobre o tema A ideia do teatro, o pensador espanhol Ortega y Gasset fez uma referência ao célebre episódio do Mestre Pedro no Don Quixote de Cervantes. Naquele trecho o protagonista investe contra os bonecos de um teatro de marionetes para salvar uma princesa que está sendo perseguida pelos mouros. Com isso destrói os bonecos e interrompe o espetáculo, enquanto esbraveja contra os perseguidores. Ortega assinala então que, ao contrário do que alguns possam pensar, tal atitude revela uma perda do sentido do irreal, da fantasia, da encenação e não da realidade.
É o que parece ter acontecido no Brasil, quando um dos melhores filmes de Walter Hugo Khouri (1929-2003), Amor, estranho amor, realizado em 1982, teve sua exibição proibida por decisão judicial, depois que uma apresentadora de televisão achou que sua imagem pública seria prejudicada por uma cena na qual sua personagem e não ela seduzia um menino. Há algumas semanas, o filme voltou a ser exibido por um canal de televisão, após a própria apresentadora reconhecer o erro.
O filme, um dos melhores de nosso cinema - e nem seria necessário repetir isso se em nosso meio não fosse confundida por vezes a ideologia de um cineasta com a de seu personagem -, não faz a apologia da pedofilia. Na verdade, trata-se de uma narrativa, colocada na tela mais de quatro décadas após a morte de Sigmund Freud e formada por variações sobre o tema edipiano. O episódio seria apenas ridículo, mas foi algo grave, pois poderia permitir pelo precedente a proibição de obras como Édipo Rei, Hamlet e Os Irmãos Karamazov, as três que Freud citava como os exemplos maiores a abordar os conflitos gerados por impulsos decisivos no comportamento humano.
Em toda sua carreira, Khouri nunca teve negada sua capacidade de narrador e cineasta dotado das virtudes maiores. Porém, esse respeito adquirido não impediu que ele fosse alvo de muitas críticas daqueles que pensavam e ainda pensam ser o cinema brasileiro um privilégio dos que se interessavam pelos dramas mais visíveis, aqueles decorrentes dos males do subdesenvolvimento e das atrocidades cometidas por ditaduras. E nossa República padeceu duas delas. Khouri seguiu caminho diverso, mas não se afastou de outros males, focalizando o alto da pirâmide e as distorções que ali também se acumulam e consequências naturais de inversões de valores.
Um cineasta brasileiro chegou a afirmar que a sua classe - a parte rica da população - era impossível de ser filmada. Mas um conde italiano, Luchino Visconti, fez isso várias vezes e realizou também o maior filme sobre operários até hoje feitos: Rocco e seus irmãos. Quando Khouri faleceu, muitos, entre eles alguns que seguiam caminhos diversos, reconheceram sua importância. Mas é preciso mencionar o crítico Luiz Zanin Oricchio, que no seu espaço no Estadão escreveu que uma grande oportunidade tinha sido perdida, ao não se ter realizado um diálogo que colocasse o cinema de Khouri como protagonista. No mesmo jornal, Luiz Carlos Merten era outro que sempre viu em Khouri um cineasta a ser estudado.
No dia 18 de novembro de 1982, neste mesmo espaço, escrevíamos: "Ao encerrar o filme com o encontro entre adulto e jovem, simbolicamente o de pai e filho, após a superação do conflito edipiano, Khouri coloca o espectador diante de um dos mais belos epílogos já concretizados pelo cinema brasileiro". Amor, estranho amor é, sem dúvida, um dos melhores filmes nacionais. E um dos mais autênticos, também.
A política brasileira é praticada num bordel e a ação, transcorrida na década de 1930, dias antes do golpe de 1937, é acompanhada por canções populares do período. A música original de Rogério Duprat reforça a atmosfera pretendida pelo cineasta. Mas mais importante, algo não mencionado pela crítica, é o emprego do adagio do Quinteto para cordas, de Franz Schubert, obra pela qual Khouri era fascinado. A música de câmara era, por sinal, um dos interesses do cineasta, que chegou a afirmar que tal forma de expressão, nos seus exemplos maia significativos, "é maior do que qualquer filme". Espera-se, agora, que Amor, estranho amor, seja mostrado mais vezes e também nas salas dedicadas a uma programação selecionada, a fim de que se torne pública a grande injustiça que foi feita a um dos melhores filmes de nosso cinema.
 
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