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Cinema

- Publicada em 24 de Abril de 2020 às 03:00

Epílogos

Hélio Nascimento
Poucos discordarão da afirmação de que muitos dos melhores trechos finais da história do cinema podem ser escolhidos na filmografia de Charles Chaplin. Dele disse uma vez Jean-Luc Goddard que hoje se diz Carlitos como quem diz Leonardo e Chaplin como quem diz Da Vinci. Se o cineasta de O desprezo está certo na constatação, é então possível encontrar nos filmes do realizador de Tempos modernos magníficos momentos, não apenas nas cenas de encerramento.
Poucos discordarão da afirmação de que muitos dos melhores trechos finais da história do cinema podem ser escolhidos na filmografia de Charles Chaplin. Dele disse uma vez Jean-Luc Goddard que hoje se diz Carlitos como quem diz Leonardo e Chaplin como quem diz Da Vinci. Se o cineasta de O desprezo está certo na constatação, é então possível encontrar nos filmes do realizador de Tempos modernos magníficos momentos, não apenas nas cenas de encerramento.
Um dos instantes notáveis na história do Oscar - ou pelo menos na época em que tal premiação se dedicava também a expor o passado do cinema - foi aquele no qual Chaplin recebeu o prêmio pelo conjunto da obra. Na ocasião, a antologia apresentada reunia cenas emocionantes que demostravam claramente o gênio do realizador.
Todas as cenas finais dos filmes de Chaplin são marcantes, desde a estrada que se abre ao protagonista até as cenas que revelam a solidão do personagem, sem esquecer a força da palavra em O grande ditador, trecho no qual, ainda segundo Godard, o cineasta criou o cinema-verdade. Há muitos epílogos comoventes na obra chapliniana e um deles é a cena derradeira de Luzes da cidade, quando a verdade aparece e toda uma trajetória é revelada. Mas em outro filme, com título semelhante, Luzes da ribalta, o último que ele realizou nos Estados Unidos, no qual reconstituía o cenário de sua juventude e colocando muito de sua personalidade na figura de Calvero, ele colocou nas imagens finais o eterno movimento da arte, com a bailarina vivida por Claire Bloom transformando-se na obra do artista morto, a alma do personagem central.
As imagens finais de um filme sempre deveriam ser um resumo do que foi apresentado e também a exposição da ideia central. Em Shane, quando o herói parte ferido e a infância começa a chegar ao fim, George Stevens sintetiza o drama antes filmado. Em outro western, Rastros de ódio, uma das tantas variações em torno da Odisseia realizadas por John Ford, o mesmo plano, mas com o personagem caminhando em sentido contrário, abre e encerra o filme, a imagem registrando a partida do homem rancoroso, vencido pelo humanismo ainda não derrotado. Não é a realidade que se impõe na cena derradeira de Sinfonia de Paris, de Vincente Minnelli. Eis um exemplo clássico de falso final feliz, pois o casal que se abraça nas escadarias veste as roupas da fantasia. O tema do sonho e da realidade sempre foi dominante na obra do cineasta de Assim estava escrito.
Nenhuma relação de grandes cenas finais estaria completa se dela estivessem ausentes os planos finais de 2001: uma Odisseia no espaço, de Stanley Kubrick. Assim como em Rastros de ódio o final está ligado a outro trecho do filme, aqui em termos musicais, pois a ligação é feita através de uma obra de Richard Strauss. O final é também um começo, como no plano da descoberta do uso da mão, no qual o cineasta também usava o mesmo poema-sinfônico. O Hino Nacional Brasileiro, segundo as variações em torno dele escritas por Gottschalk, era várias vezes utilizado por Nelson Pereira dos Santos em Memórias do cárcere, inclusive na bela cena final, quando, caminhando com dificuldades, o protagonista sai da prisão e reinicia sua jornada, um resumo do que acontecia no país quando, em 1983, o filme foi realizado.
A imagem final de A grande ilusão, de Jean Renoir, a neve apagando os sinais da fronteira, apontava para um mundo que só depois da Segunda Guerra Mundial iria surgir. Em Cinzas e diamantes, realizado numa época em que a Polônia vivia sob o regime do partido único, Andrzej Wajda cometeu a ousadia de tratar um inimigo do regime de forma a nele ver o trágico destino de uma geração. A dramática constatação da perda irreparável do passado está sintetizada no plano final de Vertigo, de Alfred Hitchcock. Orson Welles, em Cidadão Kane, terminava a narrativa mostrando que o passado de um ser humano é inacessível pelos métodos tradicionais de investigação. E no último plano de Gritos e sussurros, o ponto mais notável de sua obra, Ingmar Bergman, ao mostrar as personagens reunidas, concretiza na tela a felicidade humana em sua plenitude. Uma harmonia almejada e perdida, mas recuperada pela memória e exposta por imagens em movimento.
 
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