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Cinema

- Publicada em 20 de Março de 2020 às 03:00

O caso Picquart

Hélio Nascimento
Quando realizou O pianista, Roman Polanski, além de ter dirigido um dos melhores filmes das últimas décadas, incluiu entre as cenas uma das mais belas de todo o cinema. Em tal trecho, baseado em fato real, o cineasta obviamente colocou na tela também sua visão do acontecimento.
Quando realizou O pianista, Roman Polanski, além de ter dirigido um dos melhores filmes das últimas décadas, incluiu entre as cenas uma das mais belas de todo o cinema. Em tal trecho, baseado em fato real, o cineasta obviamente colocou na tela também sua visão do acontecimento.
Trata-se do momento em que o protagonista, o polonês Wladimir Szpilman, um judeu fugitivo dos nazistas, é descoberto por um oficial do Exército alemão, o capitão Wilhelm Hosenfeld. Depois de algumas perguntas, Hosenfeld, um professor que havia sido convocado para servir durante a guerra, sabe que o fugitivo é um pianista. Pede então que ele toque algo para provar o que disse. Há um piano na casa deserta na qual Szpilman se escondia. Nele, o polonês faz com que entre as ruinas da cidade devastada se espalhem as frases de um noturno de Chopin.
Durante a interpretação, Polanski se afasta num plano do interior da casa, focalizando o ordenança do oficial do lado de fora do carro, como se estivesse acostumado a ouvir o piano. É uma imagem que revela ao espectador, apenas com um recurso cinematográfico, que o oficial é também alguém ligado à música e também ele costuma utilizar o instrumento.
Outro detalhe revelador é o capote colocado sobre o piano. É expressivo, também, o plano que registra a emoção no rosto do militar. Terminada a guerra, Szpilman tentou localizar Hosenfeld, mas este, que havia sido feito prisioneiro pelos soviéticos, morreu num campo de concentração, pois seu empenho em salvar vítimas do nazismo foi ignorado por seus carcereiros. Uma enorme injustiça, corrigida depois e também por Israel, que conferiu a Hosenfeld o título de "Justo entre as nações".
O episódio se tornou ainda mais conhecido graças ao filme de Polanski, que agora, com este notável O oficial e o espião, um ridículo título brasileiro para o original J'Accuse, reconstitui outro fato verídico destinado a colocar em cena o ódio e a resistência diante dele. O título faz uma referência direta ao artigo escrito por Emile Zola no jornal L'Aurore e que foi o ponto de partida para uma reação que terminou por expor a farsa montada pelo Exército francês e movida pelo antissemitismo. A trama teve como vítima um oficial judeu, Alfred Dreyfus, que, como o pianista do filme citado, é salvo por outro oficial, o coronel Marie-George Picquart, um antissemita, mas que, movido pelo senso de justiça, colocou sua carreira em risco - também foi preso como Dreyfus - e tornou público o sórdido processo posto em marcha para esconder o verdadeiro culpado.
Ele próprio um dos roteiristas do filme - o outro é o escritor Robert Harris -, Polanski tece variações sobre aquela cena de O pianista, pois novamente coloca em cena um personagem integrante de determinada organização e que se coloca como força opositora a uma atuação vergonhosa que, no caso, explicitou de forma clara o que movia uma irracionalidade que terminaria nas abomináveis práticas nazistas, exercidas no país visto como o grande inimigo pelos militares franceses da época. O mal se espalha entre as nações, diz o filme, que não apenas reproduz um acontecimento, pois também deseja falar sobre o tempo presente. Assim como em O pianista, também agora a luz surge dentro da própria instituição, trazida por alguém pertencente a ela, numa evidência do eterno combate entre as forças que pretendem arrasar a cidade da justiça e os que lutam por preservá-la.
O novo filme de Polanski é poderoso e emocionante. Ele merece um lugar entre obras como O preço de uma vida, de Edward Dmytryk, Aquele que deve morrer, de Jules Dassin, Z, de Costa-Gavras e Memórias do cárcere, de Nelson Pereira dos Santos. Desde a cena inicial, a reconstituição da degradação de Dreyfus até o último encontro entre os dois protagonistas, a dignidade é preservada pelos personagens e exaltada pela direção.
Outro mérito se encontra na criação de personagens. O talento dos intérpretes e a direção de Polanski terminam por criar uma veracidade que não se afasta da tela e aumenta a força desse drama que desloca o foco da vítima para seu defensor. Este último, cuja coragem e dignidade não podem ser contestadas, não é visto como exemplo de perfeição. Ele é a expressão, também, das contradições e conflitos inerentes à condição humana.
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