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Cinema

- Publicada em 10 de Janeiro de 2020 às 03:00

Herói ultrajado

Na carreira de Clint Eastwood não são poucos os trabalhos focalizados em personagens reais. Por coincidência, Bird, seu primeiro filme a ser visto como obra de um autor cinematográfico, realizado em 1988, foi o retrato de um dos maiores nomes do jazz: Charlie Parker. Esta cinebiografia foi selecionada para o Festival de Cannes, quando então seu principal intérprete, Forrest Whitaker, recebeu a Palma de Ouro. O prêmio foi justo, mas há os que afirmam que os jurados não tiveram a coragem de premiar um realizador até então mais conhecido como ator.
Na carreira de Clint Eastwood não são poucos os trabalhos focalizados em personagens reais. Por coincidência, Bird, seu primeiro filme a ser visto como obra de um autor cinematográfico, realizado em 1988, foi o retrato de um dos maiores nomes do jazz: Charlie Parker. Esta cinebiografia foi selecionada para o Festival de Cannes, quando então seu principal intérprete, Forrest Whitaker, recebeu a Palma de Ouro. O prêmio foi justo, mas há os que afirmam que os jurados não tiveram a coragem de premiar um realizador até então mais conhecido como ator.
Tal tendência teve prosseguimento em 1990, com Coração de caçador, que reconstituía as filmagens de Uma aventura na África, de John Huston. Em 2009, Eastwood realizou um de seus melhores filmes, Invictus, reconstituição dos primeiros anos de Nelson Mandela na presidência da África do Sul. Dois anos depois, J.Edgar focalizava a figura de J. Edgar Hoover, o célebre diretor do FBI. Sniper americano, de 2014, revelava o destino de um homem vítima de sua própria sociedade.
Heróis de dois mundos, realizado em 2016, antecipava o que agora estamos vendo em O caso Richard Jewell, ao reconstituir o drama de um piloto que depois de ser considerado um herói foi acusado de tomar uma decisão errada, mesmo que tenha salvado com sua atitude a vida de todos os passageiros e tripulantes do avião que comandava. Há outros filmes na carreira de Eastwood igualmente focalizados em fatos verdadeiros, inclusive um magnifico díptico sobre a guerra no Pacífico. É verdade que suas duas obras-primas, Os imperdoáveis e Menina de ouro, não seguem tal tendência, mas, como todos os filmes citados, são magníficos exemplares de um cinema voltado para o real, distante de artificialismos e focalizado em seres humanos cuja trajetória permite ao espectador acompanhar o funcionamento de uma engrenagem impulsionada pela desumanidade.
O novo filme de Eastwood mais uma vez coloca na tela acontecimentos reais, mesmo que a ficção seja também empregada. Não é necessário qualquer esforço para que se veja agora o natural prolongamento de uma filmografia. O tema praticamente permite uma volta ao filme de 2016. Mais uma vez, homem apontado e celebrado como herói é visto depois como suspeito de algo grave. No caso, não se trata de negligência ou opção equivocada: o protagonista tem de responder a uma acusação que o aponta como um criminoso, o responsável pela explosão de uma bomba que causou mortes e ferimentos graves.
Em todos os seus filmes, sejam aqueles voltados para figuras excepcionais, como Mandela, sejam os focalizados em personagens criados pela ficção, Eastwood tem abordado o conflito entre o indivíduo e as forças destinadas a controlá-lo. É o próprio Estado, como um todo, o alvo da crítica. O cineasta já havia feito isso em outro filme notável, Um mundo perfeito, produzido em 1993. Nem sempre os caminhos indicados pelas normas levam em consideração fatores humanos. O resultado é uma inversão de valores, um processo no qual instituições que deveriam atuar como defensoras do ser humano se transformam em forças que agem contra ele, devassando sua privacidade, invadindo seu mundo, destruindo seu cenário. Eastwood é severo na forma como trata certo tipo de imprensa e também na forma como investe contra o FBI, que representa no filme o Estado em ação contra o indivíduo.
As contradições não são do cineasta, pois pertencem à essência de tal processo. Os imperdoáveis sintetizava o tema de outra forma, mas igualmente atingindo o mesmo resultado, ao mostrar a raiz de leis destinadas a impor a civilização tendo sua origem na escuridão da noite, nos sons da tempestade e na ação de um pistoleiro movido pela vingança. Há sempre impulsos primitivos na origem de edificações transformadas em símbolos da civilização. A figura ingênua do protagonista é o alvo ideal em tal tipo de ação. Mas há um momento no filme, infelizmente não devidamente destacado, que a deformação recebe a resposta adequada. É quando o personagem diz que na próxima vez em que uma ameaça for detectada não haverá aviso devido ao medo que o descobridor terá de ser apontado como culpado. Eis o Estado sofrendo as consequências de sua própria ação.
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