Como todo o filme dotado daqueles méritos que o separam da mediocridade e dos padrões dominantes, Uma mulher alta, de Kantemir Balágov, um realizador de 28 anos e que está chegando a seu segundo longa-metragem e já incluído entre os mais importantes cineastas russos em atividade, é obra que permite várias intepretações do espectador. Em primeiro lugar, é inevitável a comparação com os clássicos soviéticos, que durante muitos anos, a principiar pelo tom épico e revolucionário das obras de Eisenstein, criaram admiradores no Ocidente, nem todos influenciados por questões ideológicas e sim seduzidos pelas inovações narrativas e as descobertas estéticas.
Sinal dos tempos, sem dúvida, o filme de Balágov, assim como de outros cineastas russos contemporâneos, se afasta daquela tonalidade que buscava a grandiosidade e tentava uma sintonia com um regime que, passada a época do romantismo revolucionário, terminou sucumbindo à tirania stalinista. A ação de Dylda - o título original fazendo uma referência à altura da protagonista - transcorre durante os dias que a cidade de Leningrado conseguiu se libertar do cerco imposto pelas tropas nazistas, algo que fez com que seus habitantes fossem privados de quase tudo que é necessário à vida humana, e também deu origem a uma resistência tão heroica como decisiva para o fim do regime hitlerista.
O episódio deveria ter resultado, provavelmente, em um filme marcante se um ataque cardíaco não tivesse vitimado o italiano Sergio Leone, que antes havia realizado o extraordinário Era uma vez na América e que estava preparando um épico sobre o cerco de Leningrado. Mas o episódio ficou marcado por uma sinfonia, a Sétima de Dimitri Chostakovitch, escrita durante os episódios e com o autor habitando a cidade durante o sítio.
Baseado em livro de Svletana Aleksiévitch, Prêmio Nobel de Literatura e autora de uma obra sobre a tragédia de Chernobyl, o filme de Balágov se afasta da grandiosidade e se esmera em recriar o cotidiano que se seguiu ao conflito. E o faz de forma implacável, inclusive pela maneira como consegue em algumas passagens aproximações com temas contemporâneos.
O momento mais impressionante do filme - e há muitos durante a narrativa - é o da reunião familiar, desenrolado numa mansão luxuosa, na época stalinista, que claramente expõe a presença de uma oligarquia que despreza estranhos e se mostra adepta a rituais que revelam semelhanças e aproximações com símbolos e figuras de um mundo antigo e que permanecem presentes. Esta cena, certamente, explica o que nos dias atuais pode ser claramente percebido.
Balágov não está realizando apenas uma reconstituição do passado, falando também de sua época, o que o afasta dos grupos ingênuos e o coloca entre aqueles que dignificam o cinema, acreditando que ainda há espectadores capazes de não se deixar levar pela vulgaridade e o reducionismo. Esta cena é também um exemplo perfeito de utilização do cenário, que diz tudo, desde o passeio inicial da proprietária até o luxo dos interiores, um contraste revelador com as cenas do hospital e das casas onde vivem os demais personagens. É uma constatação definitiva sobre a farsa autoritária.
E há também o olhar sobre o presente. As cenas exteriores não são apenas reconstituição de uma época difícil de ser enfrentada, pois o filme praticamente não faz menção ao invasor nazista e se recusa a adotar aquele patriotismo cantor das façanhas da resistência. Prefere expor de forma contundente as consequências da guerra, principalmente focalizando as mutilações e o aniquilamento da racionalidade, algo que resulta na cena mais cruel do filme, uma espécie de ato destinado a retirar do cenário o futuro e a esperança.
O filme também inverte situação muito comum nos filmes produzidos na desaparecida URSS, ao colocar em cena duas mulheres ex-combatentes, cujo futuro é abalado pela violência e pelo desprezo da classe dominante, uma maneira do cineasta falar sobre as mentiras do passado. E há também a constrangedora situação enfrentada por uma burocrata do regime, obrigada a afastar de uma encenação do sistema um soldado cujo comportamento expõe a revolta de uma geração enganada.