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Cinema

- Publicada em 22 de Novembro de 2019 às 03:00

A engrenagem

Focalizar os movimentos ocultos de um sistema que se impõe pela rudeza e a brutalidade é, numa primeira visão, o objetivo de Martin Scorsese desde seus primeiros filmes, entre os quais se encontram alguns títulos memoráveis, como O touro indomável e Motorista de táxi. Mas seria uma limitação injusta e equivocada traçar tais limites para uma filmografia que também é valorizada por títulos como A última tentação de Cristo e por documentários sobre música e também sobre cinema. Como documentarista, Scorsese também se revela um grande professor. Sua análise do filme Rastros de ódio, a obra-prima de John Ford, no documentário sobre o cinema norte-americano - o cineasta tem outro sobre o cinema italiano - é uma notável e lúcida lição, desfazendo os erros que se costumam escrever sobre aquele trabalho, acusando-o de racista. Os equívocos que levam alguns a confundirem a ideologia do personagem com a visão de um cineasta é bastante comum e costumam se fixar apenas no comportamento de figuras em cena, em vez de procurar as causas de certas ações humanas. Em seu novo filme como ficcionista, este O irlandês, o diretor coloca nas imagens personagens integrantes da máfia, que, assim como na trilogia de Coppola e no épico de Sérgio Leone, é um símbolo poderoso de uma engrenagem que transforma o ser humano numa entidade impiedosa, que desconhece obstáculos éticos para manter intacto seu poder e intocável seu controle de instrumentos destinados a manter inalteradas regras e hierarquias.
Focalizar os movimentos ocultos de um sistema que se impõe pela rudeza e a brutalidade é, numa primeira visão, o objetivo de Martin Scorsese desde seus primeiros filmes, entre os quais se encontram alguns títulos memoráveis, como O touro indomável e Motorista de táxi. Mas seria uma limitação injusta e equivocada traçar tais limites para uma filmografia que também é valorizada por títulos como A última tentação de Cristo e por documentários sobre música e também sobre cinema. Como documentarista, Scorsese também se revela um grande professor. Sua análise do filme Rastros de ódio, a obra-prima de John Ford, no documentário sobre o cinema norte-americano - o cineasta tem outro sobre o cinema italiano - é uma notável e lúcida lição, desfazendo os erros que se costumam escrever sobre aquele trabalho, acusando-o de racista. Os equívocos que levam alguns a confundirem a ideologia do personagem com a visão de um cineasta é bastante comum e costumam se fixar apenas no comportamento de figuras em cena, em vez de procurar as causas de certas ações humanas. Em seu novo filme como ficcionista, este O irlandês, o diretor coloca nas imagens personagens integrantes da máfia, que, assim como na trilogia de Coppola e no épico de Sérgio Leone, é um símbolo poderoso de uma engrenagem que transforma o ser humano numa entidade impiedosa, que desconhece obstáculos éticos para manter intacto seu poder e intocável seu controle de instrumentos destinados a manter inalteradas regras e hierarquias.
Assim como em Os bons companheiros e Cassino, o tempo de projeção é expandido, o que permite ao realizador certa meticulosidade, que não abusa da repetição e se destaca pela gradação, que faz com que a dramaticidade e a violência sejam cada vez maiores, até que seja alcançado um limite no qual tudo revela a grandeza da desumanidade transformada em regra. A transformação da agressividade em lei suprema é marca dos regimes que elegem a repressão como bem maior. Assim como Coppola e Leone, Scorsese vê nos agrupamentos mafiosos uma espécie de alegoria sobre todo um modo de ação oculto aos olhares humanos, mas posto em funcionamento cada vez que surge uma ameaça. Há sempre festas e cerimônias religiosas da qual participam os personagens. As relações familiares são sempre destacadas e gestos e atitudes costumam esconder a verdadeira personalidade de personagens que não hesitam em empregar métodos destinados a eliminar qualquer obstáculo. Em O irlandês, uma das filhas do personagem principal atua como o olhar crítico, seja ao se distanciar de gestos de aparente cordialidade, seja ao adotar um rompimento radical, a fim de que seja mantida distância de métodos criminosos.
A partir de determinado momento, Scorsese se esmera em criar um clima de incomum dramaticidade. Num filme em que canções populares de época estão presentes em quase todas as cenas, o silêncio passa a se impor. São poucas as falas e mesmo a missão encomendada ao protagonista é ordenada com palavras que apenas sugerem o que deverá ser feito. É o abismo no qual mergulha o personagem. É quando ele chega ao ponto de maior degradação. O telefonema que depois é feito e mais tarde mencionado ao confessor é o instante no qual o filme registra a decomposição moral de um indivíduo, que então passa a compreender a essência de um processo no qual havia se transformado apenas em uma peça a ser movida por interesses maiores. É o peso da culpa e a dor causada pelo remorso que o filme passa a focalizar. Agora certamente se pode compreender por que na abertura de Cassino, no qual estavam presente alguns dos intérpretes do filme de agora, Scorsese utilizava o coro de encerramento da Paixão segundo Mateus, de Bach. Sua obra inteira parece repetir aquelas palavras finais, para constatar que só restam o lamento e as lágrimas, diante do tumulo de todas as esperanças, de todo o humanismo. E o filme também é um precioso documentário não apenas sobre um tempo passado, pois igualmente se constitui em esclarecedora narrativa sobre um teatro político de inegável força e atualidade.
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