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Cinema

- Publicada em 31 de Outubro de 2019 às 23:12

A visita

Hélio Nascimento
A migração de temas de uma forma de expressão para outra é um ritual que vem acompanhando o ser humano desde as primeiras tentativas de captar a realidade e assim eternizá-la. Figuras míticas e narrativas orais foram materializadas no teatro. A música e a dança procuraram captar sentimentos diversos e o traduziram para o reino dos sons e o império do movimento. Romances e peças de teatro foram transformados em ópera. Poemas deram origem a oratórios. Rituais religiosos forneceram a compositores as estruturas para a criação de obras destinadas a captar sonhos e temores. Episódios bíblicos foram transformados em imagens na pintura e na escultura.
A migração de temas de uma forma de expressão para outra é um ritual que vem acompanhando o ser humano desde as primeiras tentativas de captar a realidade e assim eternizá-la. Figuras míticas e narrativas orais foram materializadas no teatro. A música e a dança procuraram captar sentimentos diversos e o traduziram para o reino dos sons e o império do movimento. Romances e peças de teatro foram transformados em ópera. Poemas deram origem a oratórios. Rituais religiosos forneceram a compositores as estruturas para a criação de obras destinadas a captar sonhos e temores. Episódios bíblicos foram transformados em imagens na pintura e na escultura.
Em nosso tempo, heróis de histórias em quadrinhos passaram a exercer sua missão justiceira primeiro no rádio e depois na televisão. Chegaram também ao cinema, num ciclo iniciado na época dos seriados e enriquecido décadas depois em filmes dignos de toda a atenção, num ciclo que atinge seu ponto maior, de maneira de certa forma irônica, neste Coringa, que coloca nas imagens a representação daquilo que a civilização combate e até hoje, por seus próprios erros e omissões, não conseguiu manter completamente sob controle. Há momentos célebres da passagem de uma forma para outra e curiosamente foi um criador cinematográfico o autor de uma das mais famosas. Quando Orson Welles transformou um livro de George Wells em rádio-teatro de forma a causar tumulto num país, ficou devidamente provado que temas não se esgotam em sua forma original. E foi Paulo Emílio Salles Gomes quem lembrou que a arte dos recitais poéticos estava na base de uma obra-prima cinematográfica: Hiroshima, meu amor.
A se julgar pelo filme Dowton Abbey, que como todos sabem tenta transformar em cinema uma famosa série da televisão britânica, o diretor Michael Engler, que até agora trabalhou apenas para a tela doméstica, não parece apto a seguir uma carreira cinematográfica expressiva. Na iluminação e nos enquadramentos ele permanece fiel às suas origens, o que pode ser uma virtude quando esta vem acompanhada de impulsos criativos que, ao mesmo tempo em que não se afastam do cenário original, buscam a originalidade. Um exemplo maior de tal adaptação criativa é aquela empreendida por Brian De Palma em 1987, quando realizou Os intocáveis, transformando num filme fascinante uma série famosa da televisão, realizada entre os anos de 1959 e 1963.Esta fantasia sobre a ação de Eliot Ness contra a corrupção na Chicago da época da lei seca é notável inclusive pela forma como homenageia o cinema, desde Eisenstein até aos westerns e os dramas policiais. Vale ressaltar no caso de Dowton Abbey é que o criador da série, Julian Fellowes, é o autor do roteiro de Assassinato em Gosford Park, realizado em 2001 por Robert Altman, que tem óbvias ligações com a tentativa de Engler de fazer cinema. Fica assim bem claro que, se fosse outro o realizador do filme, o resultado seria bem melhor.
Estamos diante de um exemplo clássico do que se chama de desperdício de temas. No castelo de uma família que está prestes a receber o Rei e a Rainha se concentram personagens e surgem situações que formam um painel de um mundo dividido não apenas entre classes diversas, pois há também referências a movimentos sufocados de rebeldia política e até a lembrança de que na época, a terceira década do século XX, o homossexualismo era um crime no Reino Unido. O filme de Engler dá mais ênfase aos rituais da aristocracia, exercidos sempre com o maior cuidado. Os intérpretes são todos ótimos, mas o filme fica muito longe daquele gênero chamado de alta comédia, algo no qual os britânicos se destacaram nos anos 50 do século passado, graças a uma série de filmes que certamente inspiraram Fellowes quando escreveu a série. Há um trecho no filme, a sequência de abertura, que talvez seja uma homenagem ao ciclo de documentários produzidos por John Grierson e no qual Alberto Cavalcanti teve papel relevante. A correspondência pode ser uma referência a Night Mail, um clássico de 1936, curta-metragem que marcaria o cinema, inclusive o de Alfred Hitchcock, algo que o mestre reconhecia. Mas certamente o filme de Engler não se transformará em modelo digno de citação.
 
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