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Cinema

- Publicada em 02 de Agosto de 2019 às 03:00

A face oculta

Hélio Nascimento
Ao contrário de Fatih Akin, que, em O bar da luva dourada, mostrou a ferocidade sem nenhuma espécie de disfarces, Joe Berlinger em Ted Bundy - A irresistível face do mal, acentua o fato de que a violência e a irracionalidade nem sempre se revelam através de sinais facilmente distinguidos, e podem estar escondidas atrás de máscaras geralmente aceitas e que costumam abrir espaços para vários tipos de agressividades, permitindo a ação de indivíduos movidos por forças capazes de criar verdadeiros agentes da mais intensa das ações malignas. A figura do serial killer tantas vezes focalizada pelo cinema tem, agora, uma abordagem que permite uma meditação sobre como a ameaça pode permanecer sem ser percebida ao utilizar rituais e ações que costumam ser associadas à normalidade. O filme de Berlinger não é o primeiro a reconstituir um caso verídico que ilustra com perfeição o processo que permite a constatação de que inteligência e cultura não se constituem em proteção segura contra ameaças da barbárie, seja ela individual e coletiva. No seu grande romance sobre a essência do nazismo, As benevolentes, Jonathan Littell já havia deixado isso bem claro. Essa incômoda constatação teve, também no cinema, várias versões. Aquela que talvez seja a mais notável delas, O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme, que Berlinger admira, colocava em cena um culto psicanalista, também um canibal e igualmente um devoto das Variações Goldberg.
Ao contrário de Fatih Akin, que, em O bar da luva dourada, mostrou a ferocidade sem nenhuma espécie de disfarces, Joe Berlinger em Ted Bundy - A irresistível face do mal, acentua o fato de que a violência e a irracionalidade nem sempre se revelam através de sinais facilmente distinguidos, e podem estar escondidas atrás de máscaras geralmente aceitas e que costumam abrir espaços para vários tipos de agressividades, permitindo a ação de indivíduos movidos por forças capazes de criar verdadeiros agentes da mais intensa das ações malignas. A figura do serial killer tantas vezes focalizada pelo cinema tem, agora, uma abordagem que permite uma meditação sobre como a ameaça pode permanecer sem ser percebida ao utilizar rituais e ações que costumam ser associadas à normalidade. O filme de Berlinger não é o primeiro a reconstituir um caso verídico que ilustra com perfeição o processo que permite a constatação de que inteligência e cultura não se constituem em proteção segura contra ameaças da barbárie, seja ela individual e coletiva. No seu grande romance sobre a essência do nazismo, As benevolentes, Jonathan Littell já havia deixado isso bem claro. Essa incômoda constatação teve, também no cinema, várias versões. Aquela que talvez seja a mais notável delas, O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme, que Berlinger admira, colocava em cena um culto psicanalista, também um canibal e igualmente um devoto das Variações Goldberg.
Uma outra virtude do filme de Berlinger é a de estruturar de forma inédita o chamado filme de tribunal. Apoiado meticulosamente no que realmente aconteceu durante o julgamento - o que fica demostrado pela colocação junto aos créditos finais das imagens registradas pela televisão - o cineasta se afasta por vezes do ritual e sabe aproveitar muito bem o fato de o assassino ter atuado em sua própria defesa, quando então é capaz de impressionar o juiz, que na hora da sentença não esconde sua admiração por aquele que poderia ter sido um brilhante advogado. Contando com um ator cuja aparência contribui decisivamente para as intenções do cineasta, Berlinger inicia seu filme focalizando as armas de sedução empregadas pelo criminoso, capaz de encenar um cotidiano doméstico, que começa pela aceitação do cansaço da jovem e termina com o café da manhã. O curioso é que também em tal ritual tem início um relacionamento no qual a violência é reprimida. Mesmo que em algumas cenas, como a da lanterna e o enquadramento do rosto da mulher, sinais da personalidade oculta do assassino sejam sugeridas, se torna evidente a busca por um equilíbrio não alcançado e cuja falta certamente está entre as causas da série de atrocidades por aquele praticadas.
Outra virtude a ser destacada é o fato de o filme se afastar de cenas explícitas de violência. Os assassinatos não são mostrados, com exceção de um deles, quase no final da narrativa. O diretor prefere reconstituir os detalhes através da palavra do acusador, algo que não deixa de causar impacto tal a intensidade das violências praticadas. Por outro lado, poderiam ter sido evitados certos erros. Kubrick foi outro que mostrou, em Laranja mecânica, que formas culturais podem estar entre as admirações de seres movidos pela violência. Mas, no caso atual, a citação de uma sinfonia de Beethoven não funciona, até porque é confundida com uma ópera. Não saber a distinção ente os dois gêneros poder ser um erro grave de uma personagem, mas talvez seja um equívoco do próprio cineasta ou de algum roteirista, o que torna a situação ainda mais constrangedora. E certamente é fácil constatar que outro erro é ornar a figura da jovem que após tomar uma atitude, que não é justo revelar aqui, é comparada com a Rainha da Noite mozartiana, aquele símbolo do irracional vencido no final de A flauta mágica, como Bergman acentuou em um de seus maiores filmes. São detalhes que devem ser lembrados, mas que não anulam as virtudes de um filme que é mais um a tentar fazer com que o cinema se mantenha, pelo menos em parte, como um instrumento de ver complexidades e perigos.
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