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Especial

- Publicada em 28 de Agosto de 2018 às 01:00

Violência: Um debate mais que necessário

A violência sempre esteve presente na história do Brasil. Desde a chegada dos conquistadores portugueses, passando pela Colônia e pelo Império, e chegando até a República, principalmente a partir da década de 1940, com a industrialização da Era Vargas e a consequente migração em massa da população do campo para as cidades. O crescimento populacional veio acompanhado pelo aumento das desigualdades sociais, e esse prato da balança não foi equilibrado, do outro lado, por políticas públicas de habitação, emprego, urbanização, educação, saúde e renda.
A violência sempre esteve presente na história do Brasil. Desde a chegada dos conquistadores portugueses, passando pela Colônia e pelo Império, e chegando até a República, principalmente a partir da década de 1940, com a industrialização da Era Vargas e a consequente migração em massa da população do campo para as cidades. O crescimento populacional veio acompanhado pelo aumento das desigualdades sociais, e esse prato da balança não foi equilibrado, do outro lado, por políticas públicas de habitação, emprego, urbanização, educação, saúde e renda.
Hoje, falar em Brasil é falar em violência. Os números provam isso. A violência e o Brasil caminham juntos, com aquela apertando com força a mão deste. Essa dependência acabou por gerar um cenário de abuso permanente. Enquanto o Brasil se esconde, busca proteção atrás de muros, grades, cercas elétricas e câmeras de monitoramento; a violência, por sua vez, toma as ruas, desfila sem preocupações, exibe seu poder, intimida a todos.
Um país inteiro refém do medo. Medo de ser assaltado, de ter o carro roubado, de ser vítima de sequestro, medo de ser agredido, de ser estuprada, de ser assassinado. Um país com medo dos bandidos - e também da polícia.
Se é fato que o Brasil e a violência são velhos conhecidos, nunca se perderam de vista, se conhecem profundamente, não é menos verdade que esse envolvimento pode ser, ao menos, enfraquecido. Já passou da hora de, seriamente, se discutir a relação.
Um velho e conhecido ditado popular diz que não existem soluções simples para problemas complexos. No caso da violência brasileira, não há receita pronta. O que é sabido, no entanto, é que o modelo atual, de desequilíbrio penal, com dogmas tradicionais se sobrepondo aos fatos, e visões de mundo turvadas em razão de posições ideológicas, fracassou.

Mudança de rumo passa por transformação cultural

Alexandre Guilherme, 
professor de Pedagogia da Pucrs

Alexandre Guilherme, professor de Pedagogia da Pucrs


/MARCO QUINTANA/JC
Não existe uma receita de bolo, tampouco um passe de mágica que possa frear o crescimento descontrolado da violência brasileira de uma hora para outra. Não se sabe, exatamente, qual método teria mais eficácia em um cenário como o do Brasil, mas exemplos de outras nações, cujos índices de violência são menores, podem ser aplicados, mesmo que de maneira experimental. O consenso entre aqueles que estudam, que combatem e que sofrem com a violência é que, como está, não pode ficar.
Algumas medidas são citadas todas as vezes que o tema surge. Investimento em segurança pública, educação e debate democrático são três dos pilares essenciais para uma mudança significativa a longo prazo. Em ano eleitoral, também é comum que surjam proposições rasas e de pouca eficácia para a redução da violência. Cabe à população estar atenta aos discursos e, com base em evidências estatísticas e experiências já colocadas em prática, questionar respostas prontas.
Os fatores que englobam o fenômeno da violência são inúmeros e passam por praticamente todos os setores da sociedade. "Não é uma questão apenas técnica, apenas operacional. É de conceitos e, a partir daí, de modelos de implementação de políticas que são públicas e da sociedade civil, que são econômicas, sociais e culturais", pontua o sociólogo e coordenador do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), José Vicente Tavares dos Santos.
Estudar a causa da violência, aliás, é uma das maneiras mais eficazes de combatê-la, na opinião do professor de Pedagogia da Escola da Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), Alexandre Anselmo Guilherme. O acadêmico toma como referência a definição do sociólogo norueguês Johann Galtung, que separa a violência em um nível direto, que é a perceptível e que realmente preocupa a sociedade, e em um nível estrutural e cultural, que é a violência invisível. A violência direta, capaz de empilhar mais de 63 mil mortos em um ano em um único país, é resultado da negligência para com a violência estrutural, frequentemente ignorada. "Estamos acostumados a lidar com a violência física. Veja essa intervenção militar no Rio de Janeiro. Ela só lida com os sintomas e, assim, terá de ficar ali para sempre, porque não está lidando com as raízes do problema", argumenta Guilherme.
Psicóloga e professora de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Michele Scheffel Schneider também enxerga a violência estrutural como determinante, uma vez que acomete crianças e adolescentes que, desde cedo, são expostos a condições de trabalho infantil e situações de violência doméstica, abandono parental e violência delinquencial. "Investir em saúde, educação e políticas públicas que auxiliem e contribuam para que as pessoas possam ter, pelo menos, as necessidades básicas atendidas e garantidas, embora não baste, é um caminho promissor", argumenta.

Vontade política e coragem para contrariar interesses

Exemplos bem-sucedidos em outros países e em situações pontuais no território brasileiro fazem com que haja esperança em melhorias. Políticas para a juventude, como escolarização, produção identitária e empregabilidade, além de ações de melhoria no ambiente urbano em áreas degradadas, como manutenção de parques, iluminação, praças e espaços públicos adequados; acesso à saúde; mecanismos de administração de conflito de proximidade, como casos de violência entre casais; presença das polícias de forma adequada, em parceria com a comunidade, são medidas que funcionam. A questão é: como colocá-las em prática?
Para o sociólogo pesquisador do tema Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, a crise política que divide os brasileiros faz com que o sistema político tenha uma legitimidade baixa, tornando-o incapaz de levar adiante iniciativas como essas. "Tem de lidar com instituições, interesses, corporações, e é isso que nos falta no momento. Uma vez que conseguíssemos resolver isso - que, talvez, seja o mais difícil -, já sabemos qual seria o caminho. Seria uma questão de retomar essa trajetória e descartar aquilo que sabemos que não tem eficácia", argumenta.
Percebendo o descontentamento generalizado da população brasileira, o presidente Michel Temer anunciou, no início de 2017, o audacioso Plano Nacional de Segurança Pública, que prometia diminuição de 7,5% no número de homicídios dolosos no mesmo ano, a redução de 15% na superlotação das penitenciárias e a construção de cinco presídios federais. Inicialmente aplicado em três capitais - Natal, Aracaju e Porto Alegre -, o plano não apresentou nenhum resultado palpável; e, a quatro meses do fim do mandato de Temer, é difícil acreditar que alguma das metas será cumprida em tempo hábil. "Nunca houve um documento oficial. Nos últimos dois anos, não houve nenhum plano nacional. O último era o Plano Nacional de Redução de Homicídios, não foi implementado, porque houve o golpe parlamentar", explica Tavares, referindo-se ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
A substituição de uma cultura da violência por uma cultura da paz, embora soe idealizada demais, é viável, na medida em que já ocorreu no passado. Tavares lembra que, entre os anos 2000 e 2015, os dados estatísticos mostraram redução na desigualdade econômica. "É possível aumentar a oferta educacional, é possível haver um processo de bem-estar social, de construção de uma sociedade democrática. Isso aconteceu no Brasil. Acontece em outras sociedades", comenta. Embora veja a pacificação total como uma ideia utópica, o também sociólogo César Barreira reconhece que é possível, pelo menos, caminhar na direção disso. Para ele, a educação em tempo integral, apesar de ter custos elevados, deveria ser uma meta a ser alcançada em todas as escolas. Além disso, Barreira considera crucial que a política nacional leve em conte as características regionais de cada território.

Experiências que deram certo

Lançado em abril de 2007, o Projeto Pacto Pela Vida (PPV), do governo de Pernambuco, é considerado por quem estuda segurança pública o Brasil como a experiência mais exitosa na luta pela redução da criminalidade, principalmente pela queda no número de homicídios. A ação trouxe resultados expressivos até 2013. Do seu lançamento até o ano, a queda no número de homicídios e latrocínios alcançou 39,1%, no mesmo período. No Recife, antes a capital mais violenta do país, a redução chegou a 60,9%.
 Graças aos resultados do Pacto, o governo do estado recebeu dois prêmios internacionais em 2013 - um do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), na categoria Governo Seguro: Boas Práticas em Prevenção do Crime e da Violência, e outro da Organização das Nações Unidas (ONU), na categoria Melhoria na Entrega de Serviços Públicos.
Para tornar possíveis os projetos do Pacto no curto, médio e longo prazo, os investimentos em segurança pública mais que quadruplicaram em seis anos no Estado.
Entre os anos de 2009 e 2013 houve uma redução substancial das taxas de homicídio, com destaque para 2009 e 2010, quando as metas foram alcançadas, com redução das mortes em 12% e 14%, respectivamente. Entretanto, em 2014, o número de mortes voltou a crescer. A partir disso, os números voltaram a preocupar a população, tornando 2017 o pior ano do projeto.
De acordo com o artigo "Governança da Segurança Pública e Dissuasão Policial em Pernambuco: Ascensão e Declínio do Pacto Pela Vida", de José Luiz Ratton e Jean Daudelin, há dois motivos que influenciaram de forma rápida o declínio do PPV: as resistências das corporações policiais em relação ao controle externo de sua atividade e o afastamento do governador Eduardo Campos, para concorrer às eleições presidenciais, em janeiro de 2014.
Caroline Motta/JC

 Pronasci (Governo Federal)

 O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) foi lançado em meados de 2007, pelo Ministério da Justiça e destinava-se à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em suas raízes socioculturais, além de articular ações de segurança pública com políticas sociais por meio da integração entre União, estados e municípios. Lançado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Pronasci articulava 94 ações de prevenção, controle e repressão na área de segurança pública. Tinha como objetivo investir R$ 6,7 bilhões em segurança pública até 2012. O programa foi descontinuado durante o primeiro mandato da então presidente Dilma Roussef. A decisão é, até hoje, fortemente criticada por estudiosos de segurança pública no Brasil.

Propostas para uma agenda de segurança cidadã

Eixo 1 - Elementos estruturais, competências e instrumentos
  • Discussão e aprovação de um conjunto de alterações na governança da segurança pública, a fim de moldá-lo como sistema de política pública
  • Atenção especial a áreas de fronteira e a territórios vulneráveis
  • Rediscussão das fontes de recursos e suas formas de mobilização
  • Fortalecimento de formas de participação e controle social, bem como oportunidades para o envolvimento da universidade e da sociedade civil
  • Ampliação de sistemas de informação e avanço para a criação de uma autarquia ou fundação vocacionada para a coleta e análise de dados
Eixo 2 - Reestruturação dos sistemas policiais
  • Realizar um diagnóstico do que já existe e está em operação nas instituições policiais, elaborar expedientes legais e normativos, assim como ferramentas administrativas e operacionais
  • Constituir instâncias internas de controle efetivo das organizações policiais para reduzir as oportunidades de instrumentalização política das polícias
  • Articular dados por meio de um sistema integrado de gestão da informação, a fim de evitar a precariedade da comunicação entre as polícias locais
  • Incorporar garantias e assegurar direitos aos profissionais
  • Criar uma corregedoria externa das polícias civil, militar, federal e demais corpos policiais
  • Descentralização da segurança pública com protagonismo das guardas municipais
  • Construção de um modelo distinto ao da polícia militar
Eixo 3 - Justiça criminal
  • Ampliar a aplicação da Justiça restaurativa
  • Alterar a Lei de Drogas, estabelecendo limitações ao uso da pena de prisão e ampliando a aplicação de medidas restritivas de direitos. Também é proposta a descriminalização do porte e o autocultivo de maconha, assim como o uso medicinal
  • Criar um "juízo de garantias" para acompanhar a investigação criminal e assegurar as garantias dos acusados contra abusos do poder estatal
  • Melhorar as condições do cumprimento das penas, com regulamentação e obrigatoriedade das audiências de custódia
  • Ampliar a participação da vítima - minimização do princípio e da prática punitivista, que foca o ofensor
Eixo 4 - Sistema penitenciário
  • Alterações legislativas voltadas à garantia da efetividade da política de alternativas penais, priorizando a destinação e a aplicação de recursos
  • Reduzir a arbitrariedade judicial quanto à aplicação da prisão cautelar e à imposição de pena em regime de privação de liberdade
  • Intensificar esforços para implementação das assistências sociais à pessoa privada de liberdade por meio de capacitação educacional, com o fomento à empregabilidade do preso e do egresso e à assistência social
  • Neutralizar a influência das facções na provisão de bens e de serviços no ambiente prisional
Eixo 5 - Prevenção à violência, redução de homicídios e políticas setoriais
  • Estabelecer a política de redução de homicídios, com foco em territórios e públicos em que se concentram as mortes violentas
  • Promover o desarmamento, visando reduzir a circulação ilegal de armas de fogo e de munição e controlar o acesso às armas
  • Instituir uma política de redução de danos para usuários de drogas
  • Criar políticas de segurança e de direitos humanos para a população negra, para mulheres, para jovens e para a população LGBT
  • Promover campanhas que valorizem uma cultura de não violência e de construção da paz
  • Promover o direito à cidade e à mobilidade urbana

Poucos recursos exigem aplicação criteriosa

Segurança pública custa dinheiro. No Brasil, os recursos na área, em sua grande maioria, são aplicados pelos estados, e não pela União. Com os caixas combalidos, os governadores, assim, precisam fazer escolhas, definir prioridades na hora de decidir para onde irão destinar as verbas públicas. Isso pressupõe a existência de uma política, um norte, que irá guiar as decisões. No caso da segurança, essas escolhas, vide os resultados delas, parecem que não estão sendo as melhores.
Uma dessas escolhas diz respeito ao modo como se pensa a atuação policial e onde se investe nessa atuação. Especialista na história das polícias brasileiras, o historiador Marcos Bretas critica a forma como as forças são pensadas no Brasil. "As nossas formas de atuação policial são muito velhas. A polícia opera com a lógica de que o problema é de quantidade, e não de qualidade. Existe um problema de segurança? Tem de ter mais polícia, e não uma polícia diferente. É muito difícil a formulação da ideia de mudar a maneira como eles funcionam. Eles acham que, se deixá-los fazer, irá dar certo. Não vai. Estão errados nisso", observa.
A crítica do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro se comprova quando se veem governadores anunciando investimentos na compra de armas, de coletes, de equipamentos variados, de viaturas e na contratação de mais policiais, sem destinar um recurso a mais para ações de prevenção, inteligência e investigação. "A minha sensação é de que se acha que o problema é só de intensidade. Não tem de mudar respostas. Hoje, se tem todo um material de apoio para a política criminal, como as manchas criminais. Há uma certa racionalidade nisso que busca se adaptar aos eventos do crime. Mas, tradicionalmente, a polícia sempre foi um órgão extremamente burocrático", destaca o pós-doutor em História.
A colocação de que, apesar de se investir cada vez mais, os resultados não acompanham o acréscimo nos montantes aplicados se comprova nos dados. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o crescimento da criminalidade tem sido acompanhado por um considerável incremento nos gastos públicos com a segurança pública.
Em 2013, segundo dados disponíveis no Portal da Transparência do governo gaúcho, o Palácio Piratini aplicou R$ 2.178.266.383,54 na área. Cinco anos depois, em 2017, o montante gasto com investimentos e servidores ativos foi de R$ 3.761.864.716,74. A diferença representa um aumento de 72,7%. No mesmo período, houve um aumento de 45,3% no total de assassinatos (homicídios e latrocínios) no Rio Grande do Sul - de 2.057 para 2.989.
Ao todo, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os entes públicos brasileiros investiram um total de R$ 81,2 bilhões no setor em 2016. A quantia - 2,6% menor do que a aplicada no ano anterior -, porém, esconde uma discrepância.
Quando se fala em investimentos em segurança pública no Brasil, é preciso especificar quem está gastando esse dinheiro. Do total investido, a União é responsável por apenas 10,8% (R$ 8,8 bilhões). Os municípios, por sua vez, gastam 6,2% (5,1 bilhões). Quem arca com a maior parte da fatia do bolo, 82,8% (R$ 67,3 bilhões), são os estados. Em um pacto federativo no qual o governo federal fica com a maior parte dos recursos, a divisão se mostra desproporcional.
"Há uma interpretação completamente equivocada do dispositivo constitucional que trata da questão. Quando o artigo 144 fala que a segurança é dever do Estado, as pessoas acham que se trata da unidade federada estadual. Na verdade, a Constituição, quando fala em Estado, se refere ao poder público em geral - estadual, federal e municipal. A interpretação que vem sendo dada historicamente é que a segurança é responsabilidade dos estados. Mas é dos três", diz o secretário estadual de Segurança Pública, César Schirmer.
O gestor afirma que a União se omitiu da área, colocando todo o peso nas costas dos estados. "Ela não cuida nem do que é seu", observa, enfatizando que a Polícia Federal, por exemplo, tem realizado um bom trabalho no combate à corrupção, mas não tem feito o mesmo em relação às fronteiras. "Se a União fizesse aquilo que é da sua competência, já ajudaria muito, mas não está fazendo", afirma Schirmer, apontando a vinculação de recursos federais, assim como ocorre com a saúde e a educação, como um caminho a ser tomado. "Segurança é dinheiro", ressalta.
Se o dinheiro é pouco, urge que as decisões acerca de onde aplicá-lo sejam feitas com base em critérios que levem em consideração os resultados desses investimentos, e não apenas objetivando saciar o desejo popular de ver mais policiais nas ruas. "Mais importante do que punir os criminosos que cometeram o crime é impedir que outros crimes aconteçam. Essa é a base de uma boa política de segurança: a prevenção", acredita Bretas.