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agronegócios

- Publicada em 06 de Abril de 2020 às 03:00

Fruto de trabalho secular, mel gaúcho é líder no Brasil

Apicultura do Rio Grande do Sul lidera a produção nacional de mel, com cerca de 8 mil toneladas anuais

Apicultura do Rio Grande do Sul lidera a produção nacional de mel, com cerca de 8 mil toneladas anuais


FERNANDO DIAS/SEAPA/DIVULGAÇÃO/JC
Há quase 100 dias, a crise sanitária causada pelo novo coronavírus assola o mundo e, com ela, a necessidade da adoção de alternativas para fortalecer a saúde da população. Na esteira desse debate, o mel e o própolis ressurgiram no topo das listas de alimentos indicados por nutricionistas para fortalecer o sistema imunológico dos humanos.
Há quase 100 dias, a crise sanitária causada pelo novo coronavírus assola o mundo e, com ela, a necessidade da adoção de alternativas para fortalecer a saúde da população. Na esteira desse debate, o mel e o própolis ressurgiram no topo das listas de alimentos indicados por nutricionistas para fortalecer o sistema imunológico dos humanos.
Mais do que uma boa lembrança de suas propriedades frente as consumidores, o poder medicinal dessas substâncias naturais elaboradas pelas abelhas serve de alento especialmente aos apicultores, que se animaram com a- perspectiva de desovar estoques acumulados nos últimos anos. Pioneira no Brasil, a apicultura gaúcha lidera a produção nacional de mel, com cerca de 8 mil toneladas anuais - 20% do total do Brasil (média de 40 mil t/ano).
"Acredito que o mercado está favorável para vendermos mais, pois o mel é usado pela população como remédio, e o própolis, nem se fala: é antibiótico", afirma o professor aposentado Anselmo Kuhn, presidente da Federação Apícola do Rio Grande do Sul (Fargs). A entidade cinquentenária que representa cerca de 30 mil apicultores, a maior parte formada por veteranos situados na linha de tiro da virose global, o chamado grupo de risco.

Maiores produtores de mel do mundo*

  1. China - 551.476
  2. Turquia -  114.471
  3. Argentina -  76.379
  4. Irã -  69.699
  5. EUA - 66.968
  6. Ucrânia - 66.231
  7. Rússia -  65.678
  8. Índia - 64.981
  9. México - 51.066
  10. Etiópia - 50.000
  11. Brasil - 41.594
*(Produção de 2017 em t)
Fonte: FAO
 

Covid-19 faz mel e própolis ressurgirem no topo da lista de alimentos que reforçam a imunidade

Parceria homens-abelhas data dos primórdios da civilização humana, há 10 mil anos

Parceria homens-abelhas data dos primórdios da civilização humana, há 10 mil anos


FERNANDO DIAS/SEAPA/DIVULGAÇÃO/JC
Ainda que a parceria homens-abelhas date dos primórdios da civilização humana, há 10 mil anos, neste momento resta no ar uma dúvida: como se elevarão as vendas de produtos apícolas se a maioria das pessoas está ficando em casa e os pontos comerciais permanecem fechados? A esperança de bons negócios vem em um momento delicado, mas que necessita de medidas preventivas. Frente à pandemia do novo coronavírus, uma das preocupações das autoridades de saúde é de como fortalecer o organismo da população, o que fez com que o mel e o própolis voltassem ao topo da lista de alimentos com propriedades medicinais. 
No entanto, assim como diversas atividades econômicas, os reflexos da crise sanitária mundial também atinge os negócios na apicultura. Uma das preocupações é a de como sustentar a produção nos apiários, alguns castigados pela estiagem do verão. Outros dependem do transporte noturno de colmeias, serviço necessariamente feito por equipes obrigadas a seguir normas restritas. O que fazer diante desse cenário?
São interrogações que só poderão ser respondidas a médio prazo, após o fim da quarentena que interditou grande número de atividades no País. No caso do mel, porém, a boa notícia é que não há risco iminente de desabastecimento. Com a queda das exportações desde 2018, subsistem estoques volumosos em mãos de atacadistas e de grandes produtores do Sul do Brasil. E o mel bem conservado não perde qualidade. O prazo de validade de dois anos costuma ser visto como formalidade legal.
O problema é o custo do espaço ocupado por esses estoques. No extremo Sudeste catarinense, as duas principais exportadoras brasileiras que captam mel do Pampa sulino ao Cerrado do Piauí, precisaram alugar galpões extras para armazenar tambores (cheios) que aguardam ordens de compra.
De qualquer forma, em último caso, encalhes podem ser entregues a preço de lenha a indústrias alimentícias. Era o que fazia em Balneário Pinhal à madeireira Flosul, nos anos 1980, quando sobrava mel em seus eucaliptais. Seu cliente preferencial era uma próspera fábrica de geleias de Cachoeirinha.
*Geraldo Hasse é jornalista especializado em agricultura. Em 1979 recebeu o Prêmio Esso de Reportagem Econômica por matéria publicada na revista Exame sobre o desafio agrícola nacional. Trabalhou por mais de 30 anos na mídia do Sudeste e escreveu uma dezena de livros. Em 2019, em parceria com Já Editores, escreveu Geografia do Mel no RS, livro (inédito) de 120 páginas produzido em formato de cartilha visando o público estudantil.

Mercado mundial impacta na valorização do produto

Como é o mercado mundial que regula os preços internos do mel, a retomada das exportações é fundamental para melhorar a remuneração dos apicultores gaúchos. Em 2018, eles começaram recusando ofertas de R$ 4,00 por quilo, valor pouco acima do custo médio de produção, situado pouco abaixo de US$ 1 por quilo, na época.
Neste ano, há produtores reclamando de lances entre R$ 5,00 e R$ 6,00 por quilo (para méis orgânicos), exatamente a metade do valor recorde (R$ 11,00 a 12,00/kg) obtido por alguns produtores nos melhores momentos da temporada de 2017, quando o País bateu recorde nas vendas externas de mel, com US$ 121 milhões a um preço médio de US$ 4,38 por quilo.
Por isso, a maioria dos apicultores, sobretudo os pequenos e médios, muitos deles aposentados ou que só produzem mel por hobby ou para gerar uma renda extra, prefere não fornecer a atacadistas e, sim, promover vendas fracionadas a amigos, familiares e pontos de venda tradicionais, onde o quilo do mel comum (de eucalipto) é vendido a pelo menos R$ 20,00, só alcançando a faixa de R$ 30,00 no caso de méis orgânicos procedentes de nichos ecológicos, caso do "mel branco" dos Campos de Cima da Serra ou do mel de quitoco do litoral norte (leia o texto "Soberbos Méis Gaúchos").

Abelhas sem ferrão ganham mercado

Sattler tem estudado a espécie Mandaçaia, cuja população parece em declínio

Sattler tem estudado a espécie Mandaçaia, cuja população parece em declínio


/TÂNIA MEINERZ/DIVULGAÇÃO/JC
Enquanto a apicultura profissional luta para se manter acima das crises ambientais e econômicas, vem se fortalecendo o mercado de méis produzidos por abelhas sem ferrão, também conhecidas como nativas. Curiosamente, sua produção não é identificada pelo vegetal fornecedor do néctar, mas pelo nome da abelha. O mais comum e considerado medicinal é o mel da abelha Jataí, que pode ser criada em jardins, quintais e varandas de apartamentos. Vendidos em pequenas porções, esses méis valem de quatro a seis vezes mais do que os das abelhas melíferas convencionais.
Em aulas e palestras, Betina Blochtein, professora de Biologia da Pucrs, costuma dizer que basta um canteiro de bulbine, flor originária da África, para sustentar uma colmeia dessas abelhinhas. Como acontece com outros animais, a convivência com elas costuma ser terapêutica, mas criá-las pode ser uma fonte de renda.
Na Capital e no Interior, em cidades como Viamão, Nova Petrópolis, Lajeado e Bom Princípio, há apicultores especializados na venda - por R$ 250,00 a R$ 300,00 - de caixas com um enxame de uma dezena de espécies de abelhas sem ferrão, que tem seu comportamento pouco conhecido. A Mandaçaia, cuja população parece em declínio (fala-se até em risco de extinção), está sendo observada por Aroni Sattler, da Agronomia da Ufrgs, uma das maiores autoridades brasileiras em doenças apícolas. Ele está para se aposentar como professor, mas não como pesquisador.
Uma das principais estudiosas gaúchas de abelhas sem ferrão, a bióloga Sidia Witter, que mantinha suas pesquisas em Taquari, foi atingida em cheio pelo decreto governamental que extinguiu a Fepagro em janeiro de 2017. Sidia vinha estudando algumas das abelhas mirins, que fazem ninhos no chão. No Rio Grande do Sul, são conhecidas 24 espécies de abelhas nativas. No Brasil, estão classificadas mais de 300.
Dessa lista, não faz parte a Lechiguana, cujo mel delicioso entrou para a história por ter provocado um porre alucinante no naturalista francês Auguste Saint-Hilaire em fevereiro de 1821, quando ele viajava de carreta pela campanha gaúcha. Em seu diário, ele a classificou como "abelha selvagem". Fazia sentido, na época. Hoje, a Lechiguana é classificada como vespa.
 

Fiscalização rigorosa!

Como as carnes e o leite, o mel é um dos produtos mais intensamente fiscalizados nos três níveis de governo, mas aqui e ali ainda sobrevive a produção sem registro de procedência e que abastece tendas de beira de estradas ou pontos urbanos de produtos alimentícios. Na Rota do Sol (Capão da Canoa-Serra Gaúcha), foi denunciada recentemente a presença de um kombista que vendia mel com rótulo falso a R$ 10,00 o quilo. A sacanagem foi denunciada, mas o homem sumiu sem ser pego.
 

Vítimas dos agrotóxicos

Machado dos Santos perdeu um centena de caixas com colmeias

Machado dos Santos perdeu um centena de caixas com colmeias


/TÂNIA MEINERZ/DIVULGAÇÃO/JC
A luta dos apicultores para se defender dos danos causados a seus apiários por agrotóxicos aplicados, principalmente em lavouras de soja, vem de longe. O problema se agravou nos últimos anos. No início de 2018, foi criado um grupo de trabalho na Câmara Setorial de Abelhas da Secretaria da Agricultura do Estado para propor medidas em defesa da atividade. Exercida junto à natureza, a apicultura mobiliza no Estado um total de 100 mil pessoas, entre criadores de abelhas, processadores, transportadores, comerciantes e técnicos - tudo isso sem contar os milhões de consumidores.
No entanto, mal começou a trabalhar, o grupo foi esvaziado por pressões ligadas à produção de agrotóxicos. A primeira vítima foi o coordenador da Câmara Setorial, agrônomo Nadilson Ferreira. Doutor em polinização, ele foi removido para outro setor da secretaria. Em meados do mesmo ano, o cargo foi entregue ao apicultor Aldo Machado dos Santos, presidente da Cooperativa dos Apicultores do Pampa (Cooapampa), criada há 13 anos em São Gabriel e ainda sem condições operacionais por falta de alguns equipamentos. Natural de Lajeado, Machado vive em São Gabriel desde os tempos do serviço militar, quando conheceu o atual vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, ídolo na Terra dos Marechais.
Como a maioria dos apicultores que mantêm apiários em terras alheias, Machado dos Santos teve prejuízos causados pela aplicação abusiva de agrotóxicos. Com mais de 2 mil colmeias, sua empresa (Apiários São Gabriel) perdeu uma centena de caixas no verão de 2017/2018, quando os apicultores do Pampa foram vítimas de uma mortandade estimada em 3,6 mil caixas. Em vez de brigar, Machado procurou uma conciliação com o outro lado. "Se processar o fazendeiro, o apicultor vai ser obrigado a sair da terra dele", justifica-se.
Após o verão de 2018/2019, quando a pulverização química destruiu 5,6 mil caixas de abelhas no Pampa, apicultores de Mata, na região de Santa Maria, promoveram um seminário técnico que resultou na abertura de inquérito do Ministério Público do Meio Ambiente, já que laudos técnicos provaram que as abelhas morreram por overdose de ingredientes ativos em biocidas agrícolas autorizados pelo Ministério da Agricultura.
O vilão da mortandade é o fipronil, inseticida cujo principal ingrediente ativo (um neonicotinóide) ataca o sistema nervoso central das abelhas, que se perdem no campo ou morrem na volta ao ninho.
Ainda não há decisão judicial sobre "o crime de Mata", mas a Basf, fabricante do fipronil, já está recomendando a retirada da aplicação foliar do produto, segundo Machado dos Santos. Além de coordenar a Câmara Setorial de Abelhas, ele assumiu a presidência da comissão de apicultura da Farsul, que esteve reunida na primeira quinzena de março. Festejada em redes sociais, sua intimidade com os poderes político e econômico é motivo de desconforto entre dirigentes do associativismo apícola gaúcho, apegados a um viés estritamente técnico, e com uma inequívoca pegada ecológica. Afinal, as abelhas não fazem um produto comum. O mel é uma extraordinária síntese alimentar.
 

Os apicultores itinerantes

Lavoura do mel de canola ocupa cerca de 50 mil hectares/ano

Lavoura do mel de canola ocupa cerca de 50 mil hectares/ano


PIXABAY/DIVULGAÇÃO/JC
Ramo “empresarial” nascido para atender à demanda por polinização de pomares de maçã implantados nos últimos 45 anos no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, a apicultura migratória responde por uma parcela não quantificada da produção de mel do Rio Grande do Sul, mas cumpre um papel importante para o acréscimo de rendimento de lavouras comerciais e a manutenção da flora.
A maior parte dos apicultores itinerantes acompanha a florada dos eucaliptos, especialmente entre na confluência dos vales dos rios Camaquã, Jacuí e Taquari, onde estão as grandes plantações da Celulose Riograndense, de Guaíba, indústria que há mais de 30 anos fomenta a apicultura em seus hortos. A eucaliptocultura ocupa cerca de 500 mil hectares no Estado e responde por cerca de metade da produção do mel gaúcho.
Há também apicultores migrantes no Pampa, no Litoral e no Planalto Norte, onde já se produz, em meados do ano, o mel de canola, lavoura que ocupa cerca de 50 mil hectares/ano, menos de 1% da área dedicada à soja (6 milhões de hectares). Não fosse pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, a sojicultura poderia render boas parcerias aos criadores de abelhas. Para fugir ao risco de manter apiários perto de lavouras sujeitas a quimioterapia, tornou-se mais intensa a procura por áreas preservadas como os Campos de Cima da Serra, no nordeste do estado. “Aqui nós produzimos mel orgânico, mas nos últimos anos cresceu o problema do pessoal que vem de fora e põe 200 caixas onde só há pasto para 20 ou 30 colmeias”, afirma Nivaldo Castellan, criador de abelhas e de gado em terra própria em Cambará do Sul, onde preside a veterana Acapi (Associação Cambaraense de Apicultores), fundada em 1984.
A crítica/queixa se dirige principalmente a empreendedores apícolas catarinenses, que após a polinização dos macieirais em Vacaria, em setembro, deslocam suas minúsculas trabalhadoras para áreas vizinhas. Com 21 milhões de hectares, os Campos de Cima da Serra são ricos em espécies apícolas, a começar pelas três árvores – carne-de-vaca, gramimunha e guaraperê - cujas flores (brancas) oferecem o néctar e o pólen responsáveis pelo “mel branco”, uma exclusividade sulbrasileira também produzida na porção catarina do mesmo ecossistema cujo top botânico é o pinheiro araucária.

O melhor mel do mundo

Região dos Campos de Cima da Serra pode ganhar selo" "Mel de Florada Nativa"

Região dos Campos de Cima da Serra pode ganhar selo" "Mel de Florada Nativa"


CHEERDJ VIA PIXABAY/DIVULGAÇÃO/JC
A 26ª Festa do Mel de Cambará do Sul, marcada para a primeira quinzena de maio, foi transferida para a mesma época de 2021. Culpa do coronavírus. Também foi cancelada a jornada de palestras de alguns dos mais experientes membros da cúpula da apicultura sulina. Menos mal que, no início de março, veio de Brasília uma boa notícia: está no Congresso, para regulamentação, um projeto que autoriza os apicultores da região a identificar como "Mel de Florada Nativa" a produção originária dos Campos de Cima da Serra, onde se destacam dois tipos de mel silvestre: o claro e o escuro, cujas colorações dependem da vegetação visitada pelas abelhas em sua faina por néctar e pólen.
O selo é fruto do trabalho da Associação dos Apicultores dos Campos de Cima da Serra (Apicampos), a mais nova associação apícola do Rio Grande do Sul, criada em 2014 por Mário Boeira, apicultor, fazendeiro e professor de gaita, que já transferiu o comando da entidade ao filho Gabriel Boeira, apicultor, pastor evangélico e radialista.
Com 54 associados em sete municípios (Bom Jesus, Cambará, Jaquirana, Monte Alegre dos Campos, São Francisco de Paula, São José dos Ausentes e Vacaria), a Apicampos promove cursos em parceria com o Senar e faz compras coletivas de insumos para a apicultura. E está empenhada na fixação da Rota do Mel, uma típica parceria público-privada que combina apicultura e turismo ecológico.
Como parte desse esforço, tenta-se agora construir (em Jaquirana) uma casa de mel onde os associados possam processar legalmente a produção regional sem precisar deslocar-se para entrepostos distantes - Osório, Ivoti, Novo Hamburgo ou Viamão, cujas associações apícolas possuem instalações autorizadas pelo Ministério da Agricultura. No Rio Grande do Sul, há 90 associações de apicultores. Metade delas está ativa, as outras são tidas como latentes ou inoperantes por causas diversas, entre elas o envelhecimento dos associados que abandonam a atividade por não ter herdeiros dispostos a levar adiante o negócio. Têm sido poucas as sucessões familiares bem sucedidas. Algumas, de pai para filha.
É o que acontece no Apiário Cambará, cujo fundador, Irineu Castilhos, de 78 anos, está passando para a filha Liane Castilhos o negócio criado em 1982. São 500 caixas de abelhas espalhadas num raio máximo de 20 quilômetros do centro da cidade, onde a família mantém uma loja de produtos apícolas. Com um rendimento muito acima da média gaúcha (18 quilos por colmeia/ano) e um custo de produção baixo (R$ 2,00 por quilo, segundo estimativa feita há 10 anos), os Castilhos vivem da apicultura, atividade crescente na região. Das 400 famílias de pequenos agricultores assistidas pela Emater em Cambará, 120 possuem colmeias e 30 tiram seu sustento principalmente das abelhas.
Não admira que, tendo esses apicultores como referência, a Apicampos incentive a instalação de apiários de nativos em espaços disponíveis na região. Se isso acontecer, a renda apícola beneficiará mais a população serrana do que os praticantes da apicultura itinerante. Mas não basta instalar as colmeias achando que algum tempo depois bastará "tirar o mel". A apicultura sedentária requer vigilância. Uma das boas práticas consiste em oferecer pacotes protéicos às abelhas nos invernos mais rigorosos e em momentos de escassez dos pastos apícolas naturais. É aí que o bicho pega.
Alguns anos atrás, os primeiros "alienígenas" chegados aos Campos de Cima da Serra foram recebidos com desdém por fazendeiros, mas alguns destes se animaram com a remuneração oferecida a título de arrendamento. A onda cresceu até dar origem a certa animosidade, lembrando o confronto de interesses entre os defensores da mata atlântica e os adeptos do plantio de árvores exóticas como o pinus, intensamente plantado em áreas campestres há 50 anos - com incentivos fiscais ao reflorestamento. A rigor, as abelhas são as protagonistas emergentes da disputa por espaços apícolas naturais, longe de áreas cultivadas mecanicamente.
Apicultores de Cambará chegam a afirmar que alguns dos colegas itinerantes são tão vorazes no seu apetite financeiro que estacionam nos Campos de Cima da Serra não tanto para produzir mel, mas para restaurar seus enxames depauperados pela temporada estafante nos pomares de maçã, onde a produção de mel é insignificante, razão pela qual parte da colônia morre de fome. Porém, como as abelhas não descansam, é claro que mesmo estressadas produzem um volume de mel que acaba sendo levado para entrepostos distantes.

Rio Grande do Sul, terra de sabores variados

Mel de eucalipto representa 50% da produção gaúcha de 8 mil toneladas/ano

Mel de eucalipto representa 50% da produção gaúcha de 8 mil toneladas/ano


/VISUALHUNT/DIVULGAÇÃO/JC
A apicultura gaúcha produz 8 mil toneladas de mel por ano. O de eucalipto representa cerca de 50% da produção, segundo a Federação dos Apicultores do Estado (Fargs). Também pesam bastante - até 30% do total - os méis silvestre e de flores do campo, cuja denominação mais confunde do que esclarece, pois ambos procedem das mesmas fontes da flora regional e, ainda, de flores de plantas cultivadas. Os demais tipos de mel são regionais.
Nos Campos de Cima da Serra, que reivindica um selo geográfico para o que denomina "mel de florada nativa" - um 'silvestre' típico da região -, destaca-se o mel branco, proveniente da florada de três árvores da mata atlântica do Nordeste gaúcho: carne-de-vaca, gramimunha e guaraperê. Suas flores brancas aparecem ao longo do verão e geram um mel esbranquiçado quando cristaliza sob o frio.
Em 2019, a Apicampos estimou em 650 toneladas a produção total da região, cabendo ao mel branco uma parcela estimada em 90 toneladas; além disso, estimou-se em 45 toneladas a produção de melato, proveniente da bracatinga, árvore nativa da mata atlântica, de cuja resina (e não das flores) as abelhas fazem um tipo de mel rico em sais minerais.
As abelhas começam a explorar a resina em fins de março, deixando as colmeias cheias em maio, mas o volume de produção alterna-se bienalmente, como ocorre na fruticultura. Os apicultores serranos reivindicam um selo de identificação geográfica tanto para o mel branco quanto para o melato.
Os outros méis mais característicos da flora riograndense são o de laranjeira, tradicionalmente produzido nos vales dos rios Caí e Taquari. No Litoral Norte, há uma produção significativa de mel de quitoco, erva rasteira de várzeas úmidas. Ele é procurado por pessoas com problemas digestivos. Nos últimos anos, por fim, alguns apicultores começaram a elaborar rótulos do mel de uva-do-Japão, bela árvore asiática que se adaptou tão bem ao Sul que se tornou "invasora" da mata atlântica. É a última novidade de uma vegetação que há meio século produzia e comercializava méis de angico, aroeira, timbó, unha-de gato e outras especialidades desaparecidas ou restritas a áreas muito pequenas.

Uma bela e rica história

Apiário e casa do mel da Agronomia da Ufrgs foram construídos no início do século XX por Emílio Schenk

Apiário e casa do mel da Agronomia da Ufrgs foram construídos no início do século XX por Emílio Schenk


/Arquivo Pessoal/Divulgação/JC/
A história da apicultura do Rio Grande do Sul começa com Frederico Hannemann, alemão nascido em 1819 que se instalou em 1853 em Rio Pardo com um enxame da abelha europeia, a cármica, que sobreviveu a uma viagem transoceânica em um veleiro. O imigrante plantou árvores melíferas, produziu e vendeu mel, importou equipamentos de processamento de mel e ensinou aos vizinhos os segredos da criação do inseto mais respeitado pelo homem. Ele morreu em 1912, deixando objetos até hoje expostos no Museu de Rio Pardo.
O segundo grande nome da apicultura gaúcha é Emilio Schenk (1875-1945), imigrante alemão que se instalou no início do século XX em Taquari, a capital da laranja, onde implantou um respeitado parque-escola apícola, com apoio do presidente nascido no Estado, Getulio Vargas. Ao criar uma colmeia rústica, adequada ao clima frio e apreciada pelos sitiantes gaúchos, que se dispunham a vistoriar suas colmeias apenas duas ou três vezes por ano, ele foi um dos responsáveis pela expansão da produção gaúcha de mel.
Depois de ensinar o ofício a milhares de apicultores e fomentar o desenvolvimento da apicultura, o parque apícola de Taquari perdeu força à medida que escasseavam as verbas públicas para pesquisa. Com a extinção da Fepagro há três anos, suas instalações estão aos cuidados de poucos funcionários remanescentes.
A outra referência pedagógica dos apicultores foi Hugo Muxfeldt (1904-1999), que criou em Porto Alegre uma escola de apicultura, deu cursos no interior, fundou associações apícolas e manteve por mais de 30 anos uma coluna semanal no Correio Rural. Muxfeldt nasceu em Nova Petrópolis numa família rural que só falava alemão. Para aprender o português, foi morar com uma família brasileira. Professor de educação física e chefe escoteiro, ficou famoso ao participar do programa radiofônico O céu é o limite e só tropeçou na pergunta 50, depois de nove semanas. Fundador da Associação Gaúcha de Apicultura (AGA), em 1962, foi o primeiro presidente da Confederação Brasileira de Apicultura, criada em 1968 em Porto Alegre. Entre os seus milhares de discípulos, figura Anselmo Kuhn, de 64 anos, ex-professor da Escola Técnica Agrícola de Novo Hamburgo.
Muxfeldt viveu por dentro a crise desencadeada pela introdução acidental das abelhas africanas no Brasil, em 1957, quando uma centena de enxames escapou de um isolamento montado no horto florestal de Rio Claro (SP) pelo agrônomo paulista Warwick Kerr (1922-2018), que estudava o comportamento desses insetos trazidos da Nigéria com autorização do Ministério da Agricultura.
Livres no ambiente sul-americano, as africanas se mostraram profundamente agressivas, provocando acidentes mortais com animais domésticos e seres humanos. Muitos apicultores abandonaram a produção de mel porque as abelhas europeias, habitualmente mansas, mudaram seu comportamento, tornando-se mais agressivas após o cruzamento com as "assassinas", que provocaram temor e pânico de Missiones, na Argentina, à América Central. Ao cabo de dez anos, a apicultura brasileira havia se adaptado à mudança provocada pelas abelhas europeias africanizadas, um híbrido reconhecidamente mais produtivo. Para manejá-las, foi preciso criar roupas especiais, inclusive máscaras. A invasão africana provocou intensos debates. Muxfeldt defendeu as "tigrinhas", como se referia às africanizadas. Do outro lado se colocou o dentista e apicultor Bruno Schirmer (1904-1973), de Santa Maria, que chegou a defender a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito no Congresso para investigar "o crime de Warwick Kerr". Deu em nada.
O último artífice da apicultura regional foi Ascindino Curtinaz, que faleceu em 2018 aos 90 anos. Com base em Gravataí, ele mantinha colmeias nos eucaliptais de Guaíba, em que frequentemente "esquecia" onde havia deixado suas abelhas, pois seu xodó era a fabricação de equipamentos para processar os produtos apícolas nas agroindústrias. Desde uma colmeia batizada com seu nome até mecanismos como uma centrífuga, todos seus inventos foram patenteados.
* Geraldo Hasse é jornalista especializado em agricultura. Em 1979 recebeu o Prêmio Esso de Reportagem Econômica por matéria publicada na revista Exame sobre o desafio agrícola nacional. Trabalhou por mais de 30 anos na mídia do Sudeste e escreveu uma dezena de livros. Em 2019, em parceria com Já Editores, escreveu Geografia do Mel no RS, livro (inédito) de 120 páginas produzido em formato de cartilha visando o público estudantil.

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*Geraldo Hasse é jornalista especializado em agricultura. Em 1979 recebeu o Prêmio Esso de Reportagem Econômica por matéria publicada na revista Exame sobre o desafio agrícola nacional. Trabalhou por mais de 30 anos na mídia do Sudeste e escreveu uma dezena de livros. Em 2019, em parceria com Já Editores, escreveu Geografia do Mel no RS, livro (inédito) de 120 páginas produzido em formato de cartilha visando o público estudantil.