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Segurança Pública

- Publicada em 27 de Fevereiro de 2018 às 09:54

Medida é constitucional, mas aspectos da intervenção federal no Rio preocupam especialistas

Reuniões de conselhos só ocorreram depois de assinatura do decreto

Reuniões de conselhos só ocorreram depois de assinatura do decreto


MARCOS CORRÊA/PR/JC
Além de levantar diversas questões de caráter político, a intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada pelo presidente Michel Temer no dia 16 de fevereiro, disparou uma série de debates do ponto de vista constitucional. É a primeira vez, desde a promulgação da Constituição de 1988, que a União intervém em uma das unidades federativas.
Além de levantar diversas questões de caráter político, a intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada pelo presidente Michel Temer no dia 16 de fevereiro, disparou uma série de debates do ponto de vista constitucional. É a primeira vez, desde a promulgação da Constituição de 1988, que a União intervém em uma das unidades federativas.
Prevista nos artigos 34 e 35 da Constituição, a intervenção em estados e municípios pode ocorrer, assim como o estado de sítio e o estado de defesa pode ser decretado pelo chefe do Executivo em casos de grave crise. Entre outras prerrogativas, a medida pode ser empregada para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública" - argumento usado no caso. 
"Não se trata de uma intervenção militar, mas de um ato federal, um instrumento político previsto na Constituição. Isso precisa ficar claro", acentua o professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), Pedro Adamy. Ele explica que a defesa de uma suposta "intervenção militar constitucional" toma como base uma leitura livre do artigo 142, que não traz qualquer ligação com a atual medida. "Por tradição (ações como a intervenção), acabam sendo decisão política, discricionária", alega.
Por sua vez, Rodrigo Valin de Oliveira, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), acredita que existe "fundamentação fática" para o decreto, uma vez que é "razoável" o argumento de uma grave perturbação da ordem. "Há base constitucional. Quero crer que a acusação de um golpe em andamento, que surge de alguns setores, não corresponde à realidade."
Além da aprovação pela Câmara e pelo Senado, o texto constitucional prevê a consulta ao Conselho da República e ao Conselho de Defesa. Porém, os conselhos nunca foram implementados, ao ponto de alguns membros serem eleitos há poucos dias, em meio às movimentações que deveriam, supostamente, avaliar. "O Conselho da República, por exemplo, só se pronuncia em intervenções e em 'questões relevantes'. A Constituição não fala em pronunciar-se antes ou depois da intervenção, apenas diz que é preciso uma manifestação. É uma lei que não pegou", resume.
Outra incerteza está centrada na escolha de um militar, o general Braga Netto, como interventor. O parágrafo único do artigo 2º do decreto diz que "o cargo de interventor é de natureza militar" - o que, na visão de Adamy, pode ser inconstitucional. Segundo ele, é possível interpretar que, se o artigo 142 da Constituição delimita as instâncias de atuação dos militares, o texto do artigo 34 aborda ações de caráter civil. "Se a intervenção tem caráter político, o interventor é eminentemente civil", pondera.
A visão de Valin é um pouco diferente. "A segurança pública, no Brasil, sempre foi enfrentada a partir, também, de uma perspectiva militar. Do ponto de vista filosófico, podemos achar errado, mas, se existem polícias militares nos estados, é razoável que haja intervenção federal em questões de segurança, com a presença de militares. Isso não compromete a dimensão civil da medida."
O advogado Lúcio Antônio Machado Almeida, docente no curso de Direito da Faculdade Dom Bosco, na Capital, concorda e acredita que a opção por Braga Netto é uma forma de dar legitimidade à operação. "As instituições envolvidas são muito organizadas e legitimam totalmente a ideia de comando. Seria muito difícil conduzir de outra forma", afirma.
Ainda que também defenda que os preceitos constitucionais estão sendo respeitados, Almeida diz que não é possível ignorar o enfoque político. "Podemos estar assistindo a uma onda de enfraquecimento sem precedentes na democracia. Paradoxalmente, promovida por um presidente com conhecimentos profundos de Direito Constitucional e teoria democrática", alerta. Em sua visão, a medida aumenta o descrédito nas instituições estatais civis, além de se prestar a um objetivo de popularidade política e estimular a visão das Forças Armadas como solução para problemas da democracia. "Já vivenciamos isso em outro momento, e o resultado foi o que já sabemos", adverte.

'Pausar' o decreto poderia abrir crise institucional

Na leitura de Rodrigo Valin de Oliveira, o ponto mais controverso está na sugestão, feita por Michel Temer, de levantar a intervenção durante um curto período, de forma a votar medidas que mudam o texto constitucional, como a reforma da Previdência. No artigo 60, parágrafo primeiro, da Carta Magna, é dito de forma expressa que "a Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio".
Ele explica que a vedação tem espírito de prudência, buscando evitar o uso oportunista para objetivos alheios. "Não seria nada prudente mudar o texto constitucional quando um dos entes está em crise aguda. E como poderia desaparecer por, digamos, dez dias e, depois, voltar a existir?" Em uma situação dessas, diz o professor da Ufrgs, caberia ao Supremo Tribunal Federal invalidar qualquer reforma aprovada pelo Congresso.
A visão de Almeida, da Dom Bosco, é semelhante. "Uma 'pausa' na intervenção foge de toda proporcionalidade e razoabilidade. Se ocorresse, seria evidenciar a utilização política da medida", argumenta. Além de "leviana", qualquer interrupção não definitiva enfraqueceria a legitimidade da presidência. "Abriria uma grave crise institucional", diz.
"Ou existe um comprometimento grave, que se quer resolver até 31 de dezembro de 2018, ou essa situação difícil está sendo manejada politicamente", aponta Adamy, da Pucrs. "Formalmente, os procedimentos de revogação e de edição de um novo decreto poderiam estar corretos, mas seria inevitável debater se o problema é tão grave quanto colocado. É como uma pessoa tirar licença médica de um mês, suspender no décimo dia para uma viagem e, ao voltar, pedir para renovar a licença. Ela não estava doente?", questiona.

Ação federal abre debate para federalização da segurança

Além de discussões no Direito, a intervenção abre um debate sobre a competência para gerir questões de segurança pública. Pelo pacto federativo, essa função é dos estados - mas a chegada de um interventor no Rio é mais uma de muitas instâncias recentes na qual a União toma para si obrigações. Um dos exemplos pode ser verificado em Porto Alegre, onde tropas da Força Nacional reforçam ações de segurança desde 2016.
Almeida argumenta que a grande fatia dos recursos fica com a União, o que dificulta o cumprimento, por parte dos outros entes federativos, de suas obrigações - entre elas, a segurança. "A médio ou longo prazo, a tendência é de federalização. O que sabemos que envolve problemas, pois a União não respeita as particularidades dos estados. Essa é a questão de fundo dessa intervenção", afirma.
Para Adamy, as figuras de cooperação da União, como o envio de tropas e as ocupações militares, surgem, justamente, como forma de compensar a concentração das receitas tributárias na esfera federal.