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- Publicada em 09 de Outubro de 2017 às 17:52

Casa, mulheres, memórias

Pra amanhecer ontem (L&PM Editores, 336 páginas, R$ 49,90), segundo romance da escritora e poeta Anna Mariano, nascida em Porto Alegre, mostra com delicadeza, minúcia e bem estruturada narrativa, uma casa, duas gerações de mulheres e um destino.
Pra amanhecer ontem (L&PM Editores, 336 páginas, R$ 49,90), segundo romance da escritora e poeta Anna Mariano, nascida em Porto Alegre, mostra com delicadeza, minúcia e bem estruturada narrativa, uma casa, duas gerações de mulheres e um destino.
Anna passou a infância no interior de São Borja e escreveu o romance Atado de ervas (L&PM Editores, 2011) com temática rural e que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria melhor romance do ano de autor estreante. Em 2006, lançou o volume de poemas Olhos de cadela (L&PM Editores), finalista do Prêmio Açorianos. Ambos foram muito bem recebidos pelo público e pela crítica.
Pra amanhecer ontem é uma caudalosa e envolvente narrativa que tem como pano de fundo os anos da ditadura militar brasileira. Romance contado a três vozes, nos leva a lugares onde se misturam lembranças de infância e desafios do mundo adulto e, principalmente, nos revela, através de uma leitura prazerosa, aos meandros da intrincada tapeçaria das relações familiares.
Olga e seu desejo de sobreviver a um casamento fracassado; Clotilde, controladora e sensual, a "matriarca" das irmãs; Maria Eulália, sensível a tudo o que acontece ao seu redor, capaz de ler o destino na mão das pessoas, mas incapaz de controlar o seu; Ana Rita, a irmã de criação que nunca se sentiu realmente parte da família; e a adolescente Elisa, filha de Olga, única descendente das quatro, são as personagens principais da obra. Elisa é a autora das anotações para um romance que vai escrevendo enquanto a vida acontece, é a responsável pelo desfecho da história.
No mundo das quatro irmãs, nada é impossível - nem amanhecer ontem. Na casa que é um dos personagens do livro, as meninas receberam o amor e o afeto da mãe e o temor ao pai. Se tornaram adultas, mas não romperam os laços que as une e não deixaram de lado a casa, que, feito uma pessoa, respira, acolhe e repele. Anna mostra as semelhanças entre as famílias, os segredos inconfessados, o ódio, as traições e a força que, no fundo, faz com que olhem o futuro e contemplem as novas gerações.
Com mais essa obra, Anna Mariano vai ocupando, com merecimento, seu lugar no panorama da literatura brasileira.

lançamentos

  • Os ciclistas e outros poemas (Editora Bestiário, 88 páginas), do advogado e jornalista Fernando Castro, integrante do Grupo Quixote de poesia, traz dezenas de poemas densos e profundos, de um poeta vivido e experiente. Versos como "o peso do vácuo/ é uma recente descoberta/ do rio / como se o volume/ que se escorrega das mãos /visitasse o círculo /abandonado pelo vaso/ como um filtro/ que se estampa ósseo/ou/amoroso encontro com a paisagem/ao/debruçar-se".
  • Metodologia para o sucesso (Buqui, 88 páginas), do mestre em Engenharia de Sistemas e Informática e palestrante internacional Rafael Vasconcelos, coautor do best-seller Mastering the art of sucess, é destinado a pessoas vivas, que querem algo mais, que tem vontade de mudar e de escrever sua própria história. Pessoas que vão deixar boas marcas no mundo, que tem sonhos e vão atrás de realizá-los.
  • A panela de couro (Edição da autora, [email protected]), da uruguaia-brasileira Elizabeth Rodriguez, chef de culinária internacional e professora, apresenta uma resenha histórica da gastronomia gaúcha e de outros Brasis desde o começo da idade do couro. A obra traz belas ilustrações e receitas e é uma homenagem aos cozinheiros regionais do mundo, que oferecem pratos com amor e são patrimônio cultural de seus povos.

Dia da criança

Meu tempo de criança foi entre a segunda metade dos anos 1950 e a primeira dos anos 1960. Tive o privilégio de nascer na mágica e energética Bento Gonçalves, onde vivi até os 12 anos. Por coincidência o final da infância. Aí então Porto Alegre, bondes, jovem-guarda, aulas no Julinho e passeatas na Rua da Praia, calça Calhambeque nas Lojas Renner, cachorro-quente, banana-split e escada rolante nas Lojas Americanas, pastel e caldo de cana na volta do Mercado, cachorro-quente Passaporte para o Inferno (do Zé do Passaporte, com a pimenta lacrimogênea). O tempo passava mais lento, elegante. Vieram anos de chumbo.
Melhor voltar para a infância, para as aulas da professora Adyles Ros de Souza, cheias de ensinamentos, histórias e dicas para uma vida bonita. Um dia, nosso único colega negro não estava e ela nos disse para evitar qualquer discriminação. Não precisávamos levantar quando ela entrava em aula e nem pedir licença para levantar para apontar o lápis na lixeira ou ir ao banheiro. Moderna, pedagógica, nos educou para a vida. Mostrou-nos que é possível ser criativo, diferente. Criar, criatividade, aliás, tem tudo a ver com criança, com olhos que tocam o mar, o céu, as estrelas e os montes pela primeira vez e imaginam outros mundos. A professora Adyles foi uma coisa ótima acontecida em 1964, quando eu tinha 10 anos e ela, bondosa, disse que eu sabia escrever redações.
Na vida de uma criança, um dia, uma frase, uma situação, podem muito e para o resto da vida. Obrigado, professora, acreditei. Estou fazendo o melhor para o momento, para não desmentir suas inspiradoras e esperançosas palavras. Quem sabe, no futuro, eu ainda melhore nas redações.
Memória é onde as coisas acontecem muitas vezes, e aí a gente pode ter infinitas infâncias, lembrar de muitas formas os tempos das bolas de gude. De vez em quando pode inventar certas partes de lembranças que não foram lá das melhores. Aos sete anos, na sala da sacristia, na catequese, a freira nos assustou com uma imagem-pôster do inferno, o quadro A morte do pecador. Um velho numa cama, agonizante, rodeado por diabos terríveis, de pelos pretos e aparências tétricas era o que nos esperava se pecássemos.
O susto foi grande. Fiquei sem dormir direito um bom tempo, com medo do diabo. E era guri quase sem pecado. Um dia de madrugada meu irmão, cheio daquela história, disse que não tinha diabo nenhum no quarto e que eu dormisse. Irmão mais velho serve para isso. Obrigado, mano.
Quem assistisse à catequese até o fim ganhava um tíquete para pagar menos no Cine Popular, ao lado da Igreja, conhecido como Cinema Dospadre. Marcelino Pão e Vinho, O Gordo e o Magro, os Três Patetas, O Tarzan e o John Wayne matando índios nos distraiam rigores da catequese e do quadro do inferno, que, aliás, está numa das paredes da Matriz de Bento. A Igreja assustava, mas dava desconto para o cinema. Era a vida, amarga e doce, profana e sagrada, cheia de aprendizados de criança, gestando o menino, o pai do homem.

a propósito...

É bom e necessário lembrar da infância, das origens e tentar se entender um pouco, mas sem exagerar dizendo "que saudades tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais", do romântico Casimiro de Abreu. Infância não é só beleza e Casimiro sabia. Velhas infâncias não eram melhores ou piores que as eletrônicas de hoje. São diferentes. Fui com as filhas na Disney. Viram maravilhas. Mas uma das maiores alegrias foi correr, rir e brincar com as primas, sem qualquer brinquedo, no prédio do trenzinho que nos transportava para fora. Luzes, palavras, sons, imagens, videogames, smartphones, tudo bem. Mas a leitura silenciosa de um livro e a brincadeira pura ainda são experiências incomparáveis para a imaginação, sonho, o coração e a inteligência.