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Entrevista Especial

- Publicada em 26 de Fevereiro de 2017 às 21:49

Para pesquisadora, o sistema prisional legitima o crime

"Isso não vai ficar dentro dos presídios. A gente está vivendo uma guerra civil"

"Isso não vai ficar dentro dos presídios. A gente está vivendo uma guerra civil"


MARCO QUINTANA/JC
Pensar em soluções para o problema prisional no Brasil exige que se pensem políticas de segurança pública integradas, alerta a pesquisadora e psicóloga social Márcia de Calazans. A experiência de trabalho em presídios e a pesquisa sobre o comportamento da violência em territórios urbanos levam a pesquisadora a afirmar que o encarceramento não deve ser adotado como política de prevenção à violência.
Pensar em soluções para o problema prisional no Brasil exige que se pensem políticas de segurança pública integradas, alerta a pesquisadora e psicóloga social Márcia de Calazans. A experiência de trabalho em presídios e a pesquisa sobre o comportamento da violência em territórios urbanos levam a pesquisadora a afirmar que o encarceramento não deve ser adotado como política de prevenção à violência.
Márcia vê como equivocada a proposta de privatizar presídios, que seria uma forma de o Estado se eximir da sua responsabilidade. Em vez disso, defende que "deveria se resolver a vida desses 40% da população carcerária que está lá como provisória". Para a ela, o fato de quase metade dos presos no Brasil não terem sido julgados legitima o poder do crime.
"Estamos muito atrasados em pensar a política de segurança pública, e se pensa equivocadamente como polícia, sem integrar educação e cultura", observa. Como saída, acredita no compartilhamento de responsabilidades entre as esferas administrativas, e chama os municípios a participarem do processo. "Nossa vida acontece nas cidades", lembra. A iluminação pública, defende, é uma maneira de incentivar o uso de espaços, criando um ambiente de segurança.
Jornal do Comércio - O Plano Nacional de Segurança Pública tem menos de 20 anos. Quanto tempo o Brasil está atrasado em relação a outros países?
Márcia de Calazans - Temos duas políticas no País que são bem inadequadas: a de segurança pública e a de drogas. Essas duas políticas, que são equivocadas, acabam desaguando no superencarceramento. O Brasil prende muito mal, e repercute o tempo inteiro que não prendemos, que as leis são fracas, que há impunidade, então o que existe é uma lógica completamente arbitrária e na contramão para poder pensar nessa situação. Buscam-se as mesmas resoluções para velhos problemas. A situação do sistema carcerário não é nova e foi apontada diversas vezes por grupos de pesquisa. Mas o curioso é que, com todas as dificuldades de se produzir pesquisa no Brasil, elas são muito pouco consideradas para formular as políticas. Fizemos uma pesquisa em Salvador, foram 10 anos de análise, e os homicídios ocorrem nos mesmos bairros, entre a mesma faixa etária, sexo, cor, então a política não tem impacto nesses indicadores, porque ela não é pensada a partir deles. O Brasil só pensa de forma punitiva, como se encarceramento fosse política de prevenção, e não é. Somos o quarto lugar em taxa de encarceramento mundial, e se prende muito mal. Da população carcerária que nós temos, 40% é de presos provisórios, e muitos que lá estão talvez não tenham nem pena. O próprio sistema legitima o poder do crime, torna diferente alguém que está no mundo do crime e passa pelo sistema prisional, que vem legitimando as próprias facções. A política de segurança nasce em 2000, com o Plano Nacional de Direitos Humanos do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O programa foi se aprimorando, tivemos propostas no governo (Luiz) Lula (Inácio Lula da Silva, PT) que não foram incorporadas ao plano, depois no governo Dilma (Rousseff, PT), e hoje é uma colcha de retalhos. Ao olhar o que o plano propõe, é extremamente racista e intervencionista, como alguns planos que tivemos na época da ditadura, um plano de segurança que tem intervenção nos territórios completamente distinta. No nosso país, esses territórios não dialogam entre si.
JC - Então o que acontece é que os setores não conversam entre si?
Márcia - Não tem diálogo, nem entre Federação, estado e município, nem entre as secretarias em que as políticas estão sendo discutidas e as polícias. Isso é outro vício no País, quando se fala em segurança pública achar que é polícia. É muito mais complexo que isso.
JC - A questão de compartilhar responsabilidades não é novidade e é um caminho para se dar certo, mas não acontece. Por quê?
Márcia - Aconteceu em Canoas há muito tempo, que era um dos poucos municípios com gabinete de gestão integrada, com segurança pública ampliada. Mas no Brasil, com essa infinidade de estados e municípios, não se vê isso acontecendo. Participei de alguns debates no período eleitoral, e muitos perguntavam o papel do município, e as políticas de prevenção são extremamente importantes. Dentro dessa estratificação de responsabilidades, o município se sente isento em relação à segurança pública, o que também é um equívoco, porque nossa vida acontece nas cidades. Quando uma pessoa é assaltada, não diz "fui assaltada no Estado do Rio Grande do Sul". Ela foi assaltada na esquina, no ônibus, é na cidade. O município não se compromete com isso por diversos motivos, um é para não ser cobrado, e aí evita ter responsabilidades. Mas deve ter, como a questão de iluminação, ocupação de espaços públicos... Espaços públicos, quando ocupados, são estratégias para a redução de delitos, mas todo o movimento que tem sido feito é ao contrário, o medo tem produzido mais formas de não proteção, porque as pessoas levantam muros enormes, isso gera muito mais insegurança.
JC - Muito se fala do perfil punitivo do Brasil e quais os crimes passíveis de punição, como se o receio de cometer o crime seria pela restrição da liberdade...
Márcia - Como se a punição fosse prevenção, o que é um equívoco. É importante também que se possa repensar as políticas de segurança e de drogas. A política sobre drogas é extremamente seletiva, ela não define o que é porte e o que é tráfico. Se um jovem branco e um jovem negro são pegos com a mesma quantidade pequena de droga, o negro vai preso. O encarceramento aparece como uma estratégia ofensiva contra a população negra. Apesar de estarmos no século XXI, é muito semelhante como o País lidou com a escravidão, a pós-abolição, a gente vive isso de forma diferente. É como se fosse um genocídio, uma estratégia para acabar com uma população. Quem é mais afetado pela política de drogas e de segurança pública é o jovem negro entre 15 e 29 anos, e é esse que morre em homicídios, é quem acaba indo preso. É muito mais complexo do que falarmos só do sistema prisional, ele é a ponta do iceberg da ausência de ação do Estado, que é responsável por isso, mas tem se colocado fora do cenário.
JC - O quanto o Estado e a sociedade estão trabalhando a ressocialização do preso? Quando se fala que está se prendendo muito, está colocando num ambiente ruim uma pessoa que ainda não tem um alto teor violento?
Márcia - Quando eu digo que prende mal, são, por exemplo, as nossas taxas de elucidação de homicídios, que não chegam a 6%. Significa que as pessoas matam, e não acontece nada, mas prendem a pessoa que roubou dois xampus, e a decisão foi parar no Supremo (Tribunal Federal). Prende-se muito mal nesse sentido. A questão da ressocialização é pensar que o sujeito, em algum momento, vai sair, não vai ficar a vida toda preso. E vai sair como de lá? Um sujeito que está colocado numa cela que tem que se revezar para dormir, um lugar que tem superpopulação e muitos não têm como dormir, ficam em pé ou sentados. Isso é uma forma de desumanizar. E qual é a perspectiva dele? Que políticas existem para acolher um egresso? Não só o Estado, mas a sociedade também é responsável por isso. Trabalhei 11 anos no sistema prisional, e a ideia que se tem é que só tem monstro lá. As pessoas não conseguem pensar que elas também são passíveis de cometer crimes. Todo mundo tem um pouco de maldade e de bondade em si. É muito complicado, e para isso deveria ter um trabalho diferenciado, para entender o que vem a ser um sistema penitenciário, outras formas de pensar resolução de conflito. Em vez de se construir mais presídios, como surgiu essa proposta, que não tem nada de novo, por que não se faz um mutirão e se resolve esses 40%, que é quase metade da população carcerária? Alguns vão ficar mais tempo como provisórios do que a pena que vão levar, e o Estado tem que, no mínimo, indenizar essas pessoas. O Estado legitima essas facções, porque, quando o sujeito chega na triagem, se pergunta a qual facção a pessoa faz parte. Muitas vezes o sujeito não tem, então se pergunta de onde ele é e, por esse critério, vai para alguma facção, mesmo que não seja dela.
JC - Existe uma tendência de a situação dos presídios se espalhar pelo Brasil?
Márcia - Já está espalhada. Tem um livro da Camila Nunes de uma pesquisa sobre as facções em São Paulo. Ela aborda a questão da federalização dos presídios e as soluções paliativas. Aí se tem presos de São Paulo que estão no Rio Grande do Norte. Pela forma como o sistema foi pensado e construído, seria inevitável. É quase como se o Estado tivesse construído isso, porque quando um sujeito chega num presídio e é perguntado "qual é a tua facção?", o Estado foi dando soldados para eles.
JC - E quem acaba pagando é a ponta mais fraca...
Márcia - O que me parece é que isso não vai ficar dentro dos presídios. A gente está vivendo uma guerra civil. Isso vai acontecer no ônibus, no trânsito... não é à toa que temos o homicídio de pessoas erradas. Colocar Exército no sistema prisional é descabido. Deveria se capacitar o Exército para ficar na fronteira. E o que fez a Força Nacional quando veio pra cá? Um passeio ostensivo por alguns bairros... Estamos muito atrasados em pensar a política de segurança pública, e se pensa ela equivocadamente como polícia, sem integrar educação e cultura. Em uma pesquisa sobre os jovens negros mortos em Salvador, nos chamou atenção o porquê de alguns jovens morrerem e outros não na mesma localidade. O que aparecia na vida desses jovens era a inserção na cultura. Todos eram envolvidos em alguma atividade cultural, como grafite, hip-hop, teatro, cinema. E isso não era política, essa inserção nascia da comunidade para livrar os jovens do risco. Eram as mães, alguns pais, alguém que se voluntariava, mas não uma política.
JC - Sempre que se fala da crise no sistema penitenciário, volta a discussão de privatização dos presídios. Essa pode ser uma solução?
Márcia - Primeiro, o Estado deveria resolver o superencarceramento e ter consciência de que prende mal. Antes de construir presídio, deveria se resolver a vida desses 40% da população carcerária que está lá como provisória. Isso é atribuição do Estado. O que vimos nesses episódios da parceira público-privada é uma questão estranha, visto que algumas coisas são de responsabilidade do Estado, outras não são, e aí vira uma grande confusão. Acredito que não funciona, a privatização acaba levando para outros caminhos que eximem o Estado da sua responsabilidade. E o Estado é responsável por isso.
JC - Isso compete ao Poder Judiciário, avaliar todos esses processos e separar o que é, julgar os presos antes de apenas prendê-los e manter lá sem um julgamento...
Márcia - Historicamente, quando aparecem essas crises, o Judiciário sempre conseguiu se manter imune. Acredito que o Judiciário deveria fazer um mutirão e resolver esses 40%. Mas não é um movimento que a gente vê, e se pensa em velhas soluções para problemas não tão velhos, porque hoje são maiores do que antes. O Presídio Central, por exemplo, tem três vezes mais do que a população que deveria comportar. Temos a Policia Militar dentro do Sistema Prisional, e não temos Policia Militar na rua. O que estamos percebendo é uma omissão de muito tempo, por muito tempo não se pensou em segurança pública de uma maneira mais completa. Há inúmeras pesquisas. Uma do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostrou o quanto torna menos vulnerável um jovem cada ano a mais de escolaridade. Deveria se pensar em alternativas mais factíveis do que colocar o Exército nos presídios. Ao mesmo tempo, creio que as respostas a que a gente tem assistido não são muito distintas das respostas que a sociedade tem esperado. A gente vive esse desejo de anular o outro, de vingança, de dar poucas possibilidades para o outro.
 

Perfil

Márcia Esteves de Calazans é Ph.D em Sociologia pela Ufrgs, graduada em Psicologia pela Pucrs, com mestrado em Psicologia Social e Institucional, e Doutorado em Sociologia, ambos pela Ufrgs. Trabalhou na Execução Criminal, junto ao Sistema Prisional, atendendo como psicóloga homens e mulheres presidiários, e com mulheres albergadas com questões voltadas à saúde mental e educação. Tem pesquisas e consultorias para agências como Unesco, BID, Pnud, Fundação Ford e Ministério da Justiça, entre outras. É professora na Universidade Católica de Salvador (BA), vinculada ao programa de Mestrado e Doutorado em Políticas Sociais e Cidadania e coordena o Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares sobre Violências, Democracia, Controle Social e Cidadania, vinculado ao CNPq. Participa de uma rede de pesquisa para a América Latina, África e França, e coordena duas pesquisas: "Mapeamento de Programas de Prevenção do Uso Indevido de Drogas Lícitas e Ilícitas na América Latina e Caribe" e "Capitalismo e Democracia: A Explosão dos Protestos no século XXI".