Ricardo Gruner
Se a história de Lili Elbe, uma das primeiras pessoas no mundo a passar por cirurgia de confirmação de gênero, chega com força no cinema, muito deve-se ao desempenho dos dois artistas que protagonizam A garota dinamarquesa. Eddie Redmayne (vencedor do Oscar no ano passado por A teoria de tudo) concorre novamente à estatueta de melhor ator. É ele quem interpreta a personagem-título, que nasceu como Einar Wegener. Já seu par em cena é Alicia Vikander, uma das favoritas ao prêmio de atriz coadjuvante por interpretar a esposa de Einar, Gerda Wegener - um papel tão importante que faz com que o termo "coadjuvante" seja quase uma afronta.
Dirigida por Tom Hooper (O discurso do rei e Os miseráveis), a obra foi adaptada do romance homônimo escrito por David Ebershoff e inspirado em história real. O resultado é um drama delicado e inspirador - cuja essência já é importante o suficiente para receber atenção, mas com um acréscimo de qualidade a partir de sua dupla central.
A narrativa começa na Copenhague de 1926, quando Lili ainda vivia como Einer e, junto a Gerda, formava um casal de artistas. Um dia, para finalizar um retrato, Gerda pede ao marido que ele substitua uma modelo ausente - usando os sapatos da garota e segurando um vestido. Desse momento em diante, Lili começa a despontar como uma manifestação cada vez mais verdadeira, e Einer passa a levar sua vida como uma mulher.
Ao abordar este contexto, o roteiro, assinado por Lucinda Coxon, promove um conto sobre autenticidade e respeito às diferenças. E, ironicamente, o longa-metragem foi até banido em alguns países - uma demonstração do quanto a bandeira da tolerância ainda deve ser levantada.
O cerne do filme, entretanto, está mais no íntimo do que no social. Além das descobertas da protagonista, o título explora com frequência o relacionamento dela com Gerda - e como esta última reage às mudanças em sua casa. Se antes a personagem interpretada por Alicia Vikander tinha um cônjuge atencioso que a amava e a quem ela amava, depois ela ganha uma musa inspiradora. E, mais do que isso, a retratista também segue tendo papel fundamental na vida da companheira.
Para convencer o público que se trata de um enredo crível, a produção dá espaço para que os dois atores apresentem diversas facetas da dupla de protagonistas. Nesse sentido, a evolução da segurança dos movimentos de Lili é notória; e a performance de Eddie Redmayne, completa. A composição apresentada pelo intérprete abraça diversas nuanças através de gestos, expressões e voz. E pode-se dizer que Tom Hooper fez ótimo trabalho com os atores, porque os mesmos elogios valem à principal atriz do elenco. Ao menos no recorte proposto pela ficção, Gerda é um exemplo de ser humano, e Alicia mostra-se disposta e corajosa para entregar tudo por aquilo que sua personagem acredita ser certo.
Ao mergulhar neste relacionamento, Tom Hooper abre mão quase que totalmente de outras questões pertinentes - como o preconceito, por exemplo. No entanto, essa opção torna o filme mais leve, uma característica que pode ser vista de duas formas: como decisão política para tornar a narrativa mais acessível (e vender ingressos); ou como decisão artística para valorizar o amor, a ternura e a aceitação.
E por falar em arte, não deixa de ser conveniente e curioso que Einar se sustentasse a partir do pincel. Ao abandonar a rotina como homem e deixar o cavalete para trás, Lili pode encarar sua nova vida como o mais belo fruto de uma expressão artística - e a glória de estar bem consigo mesma é muito maior do que as provindas dos bosques e paisagens que pintava.
O elenco ainda inclui Matthias Schoenaerts (Ferrugem e osso), Ben Whishaw (dos mais recentes 007) e Amber Heard (Diário de um jornalista bêbado). No Oscar, o título também figura na lista dos concorrentes ao prêmio de melhor figurino.