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Jornal da Lei

- Publicada em 18 de Fevereiro de 2016 às 14:54

Estudo mostra que subjetividade da Lei de Drogas condena usuários à prisão

 Sociólogo Marcelo da Silveira Campos - Divulgação UFGD - Jornal da Lei;jpg

Sociólogo Marcelo da Silveira Campos - Divulgação UFGD - Jornal da Lei;jpg


UFGD /DIVULGAÇÃO/JC
A Lei nº 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, completa uma década em agosto. A norma tem o intuito de prestar assistência médica a usuários de substâncias ilícitas e punir os traficantes. Todavia, as estatísticas demonstram uma realidade adversa. Durante os dez anos de vigência da lei, houve um aumento significativo de condenação de pessoas portando quantidade pequena de drogas.
A Lei nº 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, completa uma década em agosto. A norma tem o intuito de prestar assistência médica a usuários de substâncias ilícitas e punir os traficantes. Todavia, as estatísticas demonstram uma realidade adversa. Durante os dez anos de vigência da lei, houve um aumento significativo de condenação de pessoas portando quantidade pequena de drogas.
De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, em 2005, havia 32.880 homens e mulheres presos por drogas no Brasil. Na época, o crime era responsável por 13% dos encarceramentos. Em 2012, com o dispositivo em vigor, o número de detidos passou para 138.198, 27% do total de apenados.
Um estudo realizado pelo sociólogo Marcelo da Silveira Campos em sua tese de doutorado mostra que um dos motivos da condenação de pessoas que deveriam estar recebendo assistência médica é a subjetividade que a própria lei traz em diferenciar um traficante de um usuário. Segundo o pesquisador, com o novo mecanismo, as chances de prisão por tráfico aumentaram. Em entrevista ao Jornal da Lei, Campos explica os métodos utilizados para obter os resultados e as conclusões do trabalho.
Jornal da Lei - Além de analisar 1.256 boletins de ocorrência (BOs) nos bairros de Santa Cecília e Itaquera, em São Paulo, houve outra forma de coleta de informações que o auxiliaram nas conclusões da tese?
Marcelo da Silveira Campos - Eu analisei todas as ocorrências registradas de 2004 a 2009 nessas duas regiões da cidade de São Paulo. Esses dados foram coletados na Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP/SP), na qual obtive informações do município de São Paulo. Essas são as origens dos dados. As principais informações da tese foram adquiridas no boletim de ocorrência e na sentença. Porém, durante o estudo, fui voluntário da Pastoral Carcerária. A partir dessa experiência, pude conversar com apenados e ter a vivência de visitar os presídios, mas nunca abordei diretamente o tema. Também não entrevistei policiais, juízes ou promotores. Concentrei no que de fato estava na ocorrência e se isso se tornou uma condenação.
JL - Por que o recorte entre os anos de 2004 a 2009?
Campos - Pela razão metodológica da pesquisa. Como utilizei o modelo de série temporal, esse mecanismo de avaliação de política pública tem de ter um período anterior e posterior à formulação da nova Lei de Drogas em 2006. Foi estudado cerca de dois anos e meio antes da aprovação e dois anos e meio depois para compreender o que ocorria e o que acontece.
JL - Qual motivo o levou a estudar as ocorrências dos bairros de Santa Cecília e Itaquera?
Campos - Na época, a dificuldade de obter dados da cidade inteira, compará-los e analisá-los. Santa Cecília é um local específico no qual ocorrem várias questões envolvendo drogas, como é o caso da Cracolândia. Além disso, há uma diversidade muito forte de pessoas neste bairro, pois há a Santa Casa, universidades que abrigam, na grande maioria, a classe média, como a Mackenzie e o Istituto Europeo di Design (IED), além do fluxo intenso de pessoas a caminho do Centro da cidade ou para a região Oeste, juntando tudo isso com a Cracolândia. Esse foi o principal motivo. Os motivos de Itaquera eram comparar o que acontecia, não necessariamente em relação a Santa Cecília, mas sim em um bairro de periferia. No final das contas, a ideia era comparar se havia diferença entre um bairro central e um periférico.
JL - Após a análise, quais foram as principais conclusões da tese?
Campos - De modo algum eu quero colocar que sou parcial ou que as pessoas não fazem o trabalho delas. O que posso dizer como resultado objetivo, ou seja, observado nesses registros, é que falta muitas vezes o detalhamento das informações no momento das prisões, sobretudo, da quantidade de drogas, por exemplo. Há registros que não trazem a quantidade especifica de grama encontrada. Dos 1.256 casos, eu só analisei o tipo de droga e a quantidade efetiva em 799. Uma boa parte não tinha a informação necessária para estudo. O perfil social, a "origem social", consegui em todos. Outra questão, é a da fala policial. O registro policial é pouco contestado ao longo do fluxo do sistema de justiça criminal. Ou seja, fora os policiais, poucas testemunhas aparecem. A verdade policial se mantém até o final, poucas outras pessoas são ouvidas e, mais do que isso, essa verdade é confirmada pelo juiz. Não é uma crítica como descrédito, mas, se outras versões estivessem no processo, fariam com o que o juiz e o promotor pudessem contestar a primeira versão. Um exemplo é de um jovem que andava na região da Cracolândia com 17 pedras de crack armazenadas na boca após ver a presença dos policiais. No registro, ele alega ser camelô e possuir R$ 73,00 para a sobrevivência. Os policiais afirmam que o dinheiro não tinha origem lícita e que a droga era para venda. Com isso, essa pessoa, sem antecedentes criminais, foi condenada a três anos e quatro meses de prisão. Uma pena altíssima, pois ele alegou ser usuário.
JL - O que isso acaba gerando no processo todo?
Campos - No registro, o escrivão de polícia tem o poder de escrever e questionar o que aconteceu. Mas a visão policial é mantida por ele e pelos outros operadores do sistema de Justiça. Isso acontece em boa parte dos casos. Essa fala única é um problema, pois é confirmada pelo juiz. E o BO é central. Como no caso de drogas não há investigação, diferente de homicídio, ele é visto como uma verdade absoluta. O boletim é uma parte certa e concreta? Não. A tradição do Direito brasileiro é a do inquérito, mas outros países utilizam o poder da negociação, mais da fala e menos do registro. Outra questão é que, quando a pena de prisão na lei de 2006 foi excluída para o usuário de substâncias ilícitas, os juízes e os policiais ficaram um pouco perdidos, na medida em que não mais havia a punição que eles aplicavam, mesmo que aquela fosse injusta, pois creio que o usuário não pode ser tratado como criminoso. Assim, eles começaram a condenar os casos que fossem possíveis de serem condenados, porque não tem critério quantitativo na lei para definir o que é uso.
JL - A falta de clareza na lei é responsável por dar essa discricionariedade tão grande para os magistrados?
Campos - O dispositivo estabelece no artigo 28, 2º parágrafo, que o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. É um critério absolutamente subjetivo, já que significa que cada juiz pode avaliar. Com o fim da pena de prisão, acabou-se condenando pessoas que poderiam não estar nas prisões, pois, se você olhar quem é condenado, irá constatar que muitos não são traficantes.
JL - A partir de sua experiência no exterior, estudou alguma legislação internacional que poderia ser aplicada no Brasil?
Campos - Como não é necessariamente a minha área de problematização, prefiro não opinar. O que seria importante ressaltar é que as legislações internacionais que mudaram o tratamento em relação às drogas como, por exemplo, a de Portugal, tiveram o uso de drogas estabilizado ou reduzido. Isto é importante. Portugal descriminalizou todas as drogas, e houve usuários, inclusive jovens, que diminuíram o uso. Também teve um efeito positivo na dinâmica do crime em geral, inclusive de diminuir a população carcerária. Na medida em que é dado mais tratamento de saúde e há a descriminalização e a legalização de algumas substâncias, é possível avançar. A Lei nº 11.343/06 tem um caráter interessante, mas teve um efeito muito reverso. Um dos pontos é a superlotação dos presídios. Para quem acredita que isso funciona, tudo bem. Para quem acredita que isso não funciona, que os presídios estão superlotados com inúmeras violações de direitos humanos, isso significa que precisamos passar por uma modificação na política de drogas para que essas mudanças aconteçam. E é só os pobres que vendem ou usam drogas? Essa resposta todos sabem: não. Porém, o sistema de justiça criminal e os estigmas sociais fazem com que seja atribuído a pessoas de baixa escolaridade, ocupações não formais ou desemprego, a utilização e comércio de substâncias ilícitas. Além disso, as mulheres estão sendo cada vez mais presas por este crime. Na pesquisa, eu mostro que o número de mulheres presas por tráfico tem aumentado. Muitas delas vão levar drogas aos companheiros na penitenciária.
JL - Qual foi o perfil detectado nos 1.256 BOs analisados?
Campos - A divisão da ocupação foi feita de acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Vendedores em lojas (31,4%); desempregados (20%); ligados à produção de bens e serviços (14%). Essas são as profissões com menor escolaridade de acordo com a CBO. Aproximadamente, 70% das pessoas presas estavam relacionadas a profissões de baixa escolaridade e muitas vezes inseridas no mercado informal de trabalho, com ocupações precárias. Não podemos nos esquecer que, no Brasil, há a dificuldade de muitas vezes comprovar o emprego, como no exemplo que eu apresentei, no qual o suspeito foi encontrado com dinheiro, mas não tinha como comprovar a procedência. Um ponto importante é que muitas vezes os escrivães utilizam expressões preconceituosas ou antigas para designar a ocupação da pessoa como, por exemplo, "prenda", "doméstica", "profissão do lar" e houve um caso registrado como profissão "presa". Em relação à escolaridade, a grande maioria tinha o Ensino Fundamental completo (50%) e Ensino Fundamental incompleto (22,5%). Ou seja, 914 dos 1.256 casos não obtinham o Ensino Médio. Apenas 2,7% tem algum vínculo com o Ensino Superior, sendo 1,3% com o Ensino Superior completo e 1,4% incompleto. Se a escolaridade é uma variável de desigualdade na nossa sociedade e que revela onde o indivíduo está na estrutura social, podemos dizer que é exatamente isso o que acontece em relação ao tráfico. Em relação à idade, 70% das ocorrências eram de jovens entre 18 a 30 anos e 20% de 30 a 40 anos. Na medida em que a idade aumenta, diminuiu o número de pessoas envolvidas com o crime. E sobre o gênero, 78% eram homens e 22% mulheres. Há até um número grande de mulheres envolvidas. Nacionalmente, de todas as mulheres presas, 50% são por tráfico, via de regra por transportar drogas para os companheiros ou por participar do comércio de drogas.
JL - Quais foram as conclusões do estudo?
Campos - A principal consideração é que a mudança gerou mais encarceramento, o que não significa que são presos traficantes, mas que usuários ou pequenos comerciantes de drogas foram condenados à prisão. Ou seja, o fim da pena gerou um efeito reverso, um efeito contrário. Os parlamentares falavam que, excluindo-a, o sistema de saúde poderia ser o mais efetivo para tratar dos usuários. Há uma distinção com base no estigma social, muitas vezes subordinado à pobreza, que determina quem vai para o sistema de saúde e quem vai para o sistema prisional. Eu mostro estatisticamente que ter pouca escolaridade e ser morador de periferia são os fatores que mais determinam uma incriminação por tráfico de drogas. Mesmo nas faixas de pequenas quantidades, as pessoas foram encaminhadas para o sistema de justiça criminal. Após a lei, isto poderia não acontecer, mas acontece. Por meio de um modelo estatístico de regressão binária, analisei que as chances de ser preso aumentaram muito. Na impossibilidade de usar a pena de prisão, se utilizou mais. Além disso, constatei a falta de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes e que tanto usuários como pequenos traficantes foram incriminados na velha lógica brasileira de tratar desigualmente os desiguais.
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