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Teatro

- Publicada em 29 de Outubro de 2015 às 22:52

A anônima violência dos desaparecidos

Formado em Química, mas logo voltando-se para o teatro, o argentino Daniel Veronese passou a dirigir espetáculos teatrais e se tornou dramaturgo. Formas de falar das mães dos mineiros enquanto esperam que seus filhos saiam à superfície é sua terceira peça. Constitui-se numa kafkiana transposição metafórica da situação então vivida na Argentina por todos aqueles parentes, em especial as mães (lembrar as Madres de La Plaza de Mayo, é claro) que tiveram filhos aprisionados e desaparecidos por força da ditadura e que esperaram anos a fio, por vezes décadas, até terem notícias (não reencontrarem, infelizmente) a estes mesmos filhos.
Formado em Química, mas logo voltando-se para o teatro, o argentino Daniel Veronese passou a dirigir espetáculos teatrais e se tornou dramaturgo. Formas de falar das mães dos mineiros enquanto esperam que seus filhos saiam à superfície é sua terceira peça. Constitui-se numa kafkiana transposição metafórica da situação então vivida na Argentina por todos aqueles parentes, em especial as mães (lembrar as Madres de La Plaza de Mayo, é claro) que tiveram filhos aprisionados e desaparecidos por força da ditadura e que esperaram anos a fio, por vezes décadas, até terem notícias (não reencontrarem, infelizmente) a estes mesmos filhos.
Mas Veronese sai do lugar comum. Ele imagina a situação de uma mulher que vai à sede de uma empresa, uma mina subterrânea, porque foi convocada, uma vez mais, para dar informações a respeito do filho. Como a empresa é muito grande, por vezes sua gerência perde informações a respeito de seus trabalhadores. Este filho mineiro está há 15 anos no interior da mina, sem jamais ter saído. O pai já havia morrido numa explosão. Tudo isso vamos sabendo pelo diálogo. À medida que a narrativa avança, a mulher, embora humilde e aparentemente inofensiva e fraca (é doente, toma remédios etc.), é também persistente e tem um mínimo bom senso que a leva a insistir ou desconfiar de situações. É preciso, pois, confundi-la, ao mesmo tempo que dar-lhe esperanças e ânimo. Toda a representação ocorre deste modo: ora a médica da mulher, que é também a médica da empresa, vem dialogar com ela; ora uma pretensa namorada-noiva do filho aparece. Enfim, o pai do funcionário que a recebera igualmente se apresenta, tentando seduzi-la. Tudo em vão, chega-se a uma decisão drástica, que é a culminância do espetáculo, de cerca de uma hora de duração (estes terrores, não os aguentamos muito mais do que isso, em geral, num espetáculo semelhante, até pela proximidade física do público com os personagens).
A direção é de Breno Ketzer, que conseguiu conciliar sua dedicação à Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal de Cultura com a realização deste espetáculo - em boa hora e com evidentes méritos. Ketzer não apenas traz um texto significativo, resgata dois atores distantes de nossos palcos há bastante tempo, Nena Ainhoren, que vive uma impecável mãe, e João França, que personifica o funcionário administrativo. O elenco se completa com Maria Cecília Guimarães, que não conhecia, e que se multiplica em várias personagens, na verdade, claros travestimentos dela mesma, de modo que o público deve, sim, saber que ela se traveste, mesmo que o personagem da mãe não se dê conta disso. O travestimento pontual, como neste caso, e o travestimento geral, em que o escritório da mina corresponde ao ambiente de uma delegacia de polícia, e a mina é a ditadura argentina, tudo isso ajuda a criar este clima de pesadelo que se enfrenta em cena e que é o objetivo do dramaturgo.
Referi, no início desta coluna, a Franz Kafka. Pensava especificamente no romance O castelo... É este terror sugerido, como suspenso sobre nossas cabeças, que é recriado por Veronese, metáfora exata do que se deve ter vivido na Argentina, em seus piores anos de violência. Veronese é exato, fugindo do lacrimejante. Pelo contrário, como em Kafka, tudo é asséptico: pessoas com mãos limpas, cumprem ordens e realizam seus deveres. Não se emocionam, não se assumem em suas responsabilidades: realizam, simplesmente, o que lhes foi indicado. Era assim nos campos de concentração nazistas, foi assim nos cárceres argentinos, uruguaios, chilenos e brasileiros das nossas mais recentes ditaduras, tem sido assim nas cadeias de Guantánamo ou nas prisões dos sistemas do Estado Islâmico, de Israel ou dos diferentes grupos terroristas do Orienta Médio, na China de Mao ou na Coreia do Norte. Aliás, o grande mérito da peça de Veronese é justamente este: embora inspirado na Argentina, ele é universal e, infelizmente, atemporal.
Todos os personagens, vítimas e carrascos, são anônimos, sem identidade, simples sombras que poderiam desaparecer, não fossem artistas como Daniel Veronese.
 
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