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ENTREVISTA ESPECIAL

- Publicada em 07 de Abril de 2014 às 00:00

Para Garzón, anistia não pode livrar crimes de lesa-humanidade


JONATHAN HECKLER/JC
Jornal do Comércio
Uma das mais destacadas autoridades internacionais em reparação de violações de direitos humanos, o jurista espanhol Baltasar Garzón se notabilizou ao pedir a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998. No seu país, tentou levar adiante uma investigação dos crimes do ditador Francisco Franco, que governou a Espanha de 1939 a 1975. Atualmente, Garzón defende Julian Assange, do WikiLeaks, a quem visita todos os meses na Embaixada do Equador, em Londres, onde o ativista está refugiado. E ainda dirige o Centro de Direitos Humanos da Unesco, na Argentina.
Uma das mais destacadas autoridades internacionais em reparação de violações de direitos humanos, o jurista espanhol Baltasar Garzón se notabilizou ao pedir a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998. No seu país, tentou levar adiante uma investigação dos crimes do ditador Francisco Franco, que governou a Espanha de 1939 a 1975. Atualmente, Garzón defende Julian Assange, do WikiLeaks, a quem visita todos os meses na Embaixada do Equador, em Londres, onde o ativista está refugiado. E ainda dirige o Centro de Direitos Humanos da Unesco, na Argentina.
Garzón esteve em Porto Alegre na quinta-feira passada para participar da Semana da Democracia, seminário que debateu os 50 anos do golpe militar no Brasil, e analisou a discussão sobre a Lei da Anistia. Antes da palestra, em entrevista ao Jornal do Comércio, salientou que a anistia não pode impedir a investigação de crimes de lesa-humanidade.
O juiz espanhol também analisou o distanciamento do Judiciário da população – problema que, segundo ele, é recorrente em quase todos os países –, a crise da democracia representativa e manifestações populares, como as passeatas de junho no Brasil e o Movimento dos Indignados da Espanha.
Jornal do Comércio – Qual é o conceito de justiça universal e como se relaciona com os crimes de lesa-humanidade?
Baltasar Garzón – É um conceito mais amplo que o instrumento para levar adiante a justiça universal, que é a jurisdição universal. A jurisdição universal, que se estabelece para juízes de qualquer país do mundo, é criada como principal instrumento contra a impunidade frente àqueles crimes especialmente graves: crimes de lesa-humanidade, crimes de guerra, genocídios, em que a comunidade internacional é a vítima. Ao serem crimes internacionais, a jurisdição tem também que ser universal. Quer dizer, independentemente do país onde tenham acontecido os fatos, da nacionalidade das vítimas e dos criminosos, qualquer juiz tem a obrigação de intervir, a não ser que já se tenha julgado, investigado ou sancionado.
JC – Ainda que não sejam vítimas da nacionalidade do juiz?
Garzón – O conceito é vítima universal. Agora, na Espanha, houve um retrocesso, com uma série de restrições, a última é que tem que haver vítimas na Espanha ou espanholas. Mas o conceito de jurisdição universal puro, como se idealizou e como se foi criando internacionalmente, é o que não distingue nem a nacionalidade das vítimas, nem a dos autores desses graves delitos.
JC – A prisão de Pinochet se enquadra nesse conceito?
Garzón – Aí havia vítimas espanholas também, mas não foi o objetivo principal. Na investigação e no processo de Pinochet, a ata de acusação formal não distingue vítimas espanholas de outras nacionalidades – se incluem logicamente as vítimas espanholas, mas também as demais. E se processa ele por genocídio, terrorismo de Estado, tortura, a respeito de todas as vítimas desses delitos.
JC – Em função dos 50 anos do golpe militar no Brasil, o tema da punição a crimes de lesa-humanidade, como a tortura, voltou a ser discutido, assim como a Lei da Anistia...
Garzón – O Brasil está fazendo avanços importantes na área da revisão do que é a anistia, a Lei da Anistia, depois da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso (da Guerrilha do) Araguaia. Tem também a Comissão (Nacional) da Verdade, que se instituiu, os avanços que alguns procuradores estão fazendo no âmbito da Operação Condor, com Uruguai, Argentina, Chile. E creio que é o momento correto para conjugar esses princípios de verdade, memória, reparação e justiça. Em que medida? Terá que ser definido, mas é preciso que haja algum princípio de justiça.
JC – É possível fazer uma reparação histórica sem punição aos culpados?
Garzón – Não, por isso digo: tem que haver, do meu ponto de vista, alguma possibilidade de justiça penal, salvo que, pelo transcurso do tempo, pelo falecimento dos criminosos, seja impossível fazê-lo. No caso espanhol, tentei fazer uma investigação (dos crimes de Franco), para que se constatassem os delitos e fossem reparadas as vítimas. A Corte Suprema disse que não. Portanto, a Espanha é um exemplo de impunidade.
JC – Quando se fala em punição a autores de crimes de lesa-humanidade, como a tortura, no Brasil, há defensores da tese de que já se passaram 50 anos, o tempo pode cumprir algum papel, muitos agentes são idosos...
Garzón – Creio que se confundem os planos. O fato de uma pessoa ser idosa pode ter influência no cumprimento de uma possível condenação, mas não em uma investigação. A investigação tem que ser garantida, em todo o caso, e uma vez que se chegue ao momento do julgamento, depois se decide o que fazer, inclusive se, pela idade, não deve ser levada adiante (a punição), se a prisão tem que ser domiciliar, se se estabelece um tipo de justiça diferente, se se compensa com uma comissão da verdade, há muitas formas. O que não se pode impedir é a investigação. Esse é um direito fundamental, e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos são claras: a investigação rápida e eficaz, independente e imparcial é um direito fundamental.
JC – Qual é a importância de uma comissão da verdade para a democracia de um país como o Brasil, que passou por uma ditadura de 21 anos?
Garzón – É fundamental. A sociedade tem o direito de saber o que ocorreu, e não somente através de livros de história. Se o Estado, em um determinado momento da história, não foi capaz de proteger seus cidadãos e permitiu e desenvolveu um golpe de Estado contra os próprios cidadãos, contra a Constituição, gerando uma série de atos contra essa população, tem a obrigação de reparar formalmente, desde pedir perdão até estabelecer os meios e os mecanismos para que uma comissão da verdade, ao menos – ao menos, porque deveria ser de justiça –, intervenha.
JC – Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a anistia ampla, geral e irrestrita.
Garzón – O problema não é que a anistia não possa ser a mais ampla possível, inclusive as Nações Unidas assim o dizem. Mas sempre há um núcleo que não pode ser afetado pela anistia: são os crimes de lesa-humanidade. É o núcleo duro dos direitos humanos.
JC - Nesse caso, com essa posição do STF, a solução poderia vir através da Corte Interamericana, que já se manifestou sobre a Guerrilha do Araguaia...
Garzón – O que a Corte Interamericana diz é: “Vocês não podem instituir um mecanismo de anistia que impeça a investigação. Tem que garanti-la. Nenhuma lei de anistia se pode aplicar aos crimes de lesa-humanidade, é impossível, são antitéticas (anistia e crimes de lesa-humanidade). Por isso, quando avaliei a lei de anistia, no caso do franquismo, disse: “Olha, não há que revogar a lei. Mas a lei de anistia não pode se aplicar aos crimes de lesa-humanidade. O ordenamento está acima. Então, (as duas normas) são compatíveis se forem interpretadas nesse sentido.
JC – Uma discussão recorrente tem sido a intervenção do Judiciário em temas que não foram resolvidos no âmbito político, como a punição de parlamentares no caso do mensalão, a própria anistia...
Garzón – Sempre há essa discussão entre politização da Justiça e judicialização da política. Não creio que se politize a Justiça ou se judicialize a política pelo fato de que juízes investiguem delitos ou atos criminosos cometidos por políticos. Todos somos iguais perante a lei, portanto, não se pode acusar um juiz de estar politizando a Justiça por investigar um caso de corrupção. Outra coisa é substituir as iniciativas da política e tratar de resolver judicialmente o que se deve resolver no âmbito político. Portanto, é preciso guardar o equilíbrio. Quando a Justiça interfere no que são atividades diretamente políticas, é reprovável.
JC – A impunidade é outro tema da pauta atual no Brasil, especialmente pelas dificuldades do sistema Judiciário. Qual é o papel do juiz nesse contexto?
Garzón – Infelizmente, críticas ao sistema são praticamente iguais em todos os países do mundo. Na Espanha, por exemplo, segundo as últimas pesquisas, 80% dos espanhóis não confiam na Justiça. Igual para a política. Ou seja, aí se vê que a crise não é só econômica, mas de valores, de regressão em direitos fundamentais, por uma política agressiva de um partido conservador como o Popular (PP, que governa a Espanha), isso afeta a credibilidade das instituições. Mas os índices de impunidade nos países, com raras exceções, é alto.
JC – Por quê?
Garzón – Acho que é a configuração dos sistemas judiciais que não têm suficiente participação da sociedade. O Judiciário e a sociedade são mundos completamente diferentes. Recorrer ao juiz dá medo. Confiar no juiz assusta. Qualquer cidadão que se aproxima para pedir algo desconhece (o sistema); muitas vezes é manipulado, outras vezes é acuado. Isso tem que mudar. O perfil da Justiça deve se democratizar. Os juízes devem se tornar muito mais simples, mais próximos da sociedade, a Justiça tem que ser mais compreensível para o cidadão, até mesmo aquele cidadão que não tem razão, para que pelo menos ele entenda por que se decidiu que ele não tem razão. Então, é preciso fazer uma reforma profunda para a aproximação da Justiça ao povo. Enfim, creio que a Justiça nunca se aproximou do povo, e ainda que tenha que julgar os cidadãos, não protege realmente os direitos dos cidadãos e, sobretudo, não se faz compreender pelos cidadãos.
JC – E na política?
Garzón – É ainda mais grave. Há uma crise profunda no sistema representativo. Os cidadãos não acreditam nos políticos – podem acreditar em alguns, mas não acreditam na política, nos partidos. Até porque os partidos, em qualquer parte do mundo, se transformaram em instrumentos de poder, instrumentos de distribuição de cargos e de ganhar eleições. Mas não são entidades participativas, transparentes, os cidadãos não os sentem como algo seu, do qual façam parte, mas, sim, como uma elite que distribui o poder entre si e que, a cada determinada época, pedem o apoio, mas depois, normalmente, traem (quem os apoiou). Há uma necessidade de democracia muito mais transparente e próxima aos cidadãos.
JC - O Brasil teve protestos em junho de 2013, com críticas generalizadas a partidos políticos. Na Espanha, os Indignados (15-M) cunharam o “não me representa”. Há um caminho político fora dos partidos?
Garzón – Não necessariamente tem que ser fora dos partidos. No Brasil, há posturas, como a do governador Tarso Genro (PT), críticas da esquerda, que defendem que esse sistema representativo se modifique. E há outros movimentos cidadãos que são contra os partidos políticos. Mas o que digo, no próprio movimento que participo, a Convocatória Cívica, na Espanha, é que se busque um ponto de encontro entre as diferentes sensibilidades de esquerda, militantes e não militantes, quer dizer, somar o que nos une e debater o que nos afasta, para ver em que ponto podemos avançar.
JC – A reivindicação de mais participação em diversos países – protestos de junho no Brasil, Indignados na Espanha, Primavera Árabe – pode criar uma nova democracia universal?
Garzón – Esses movimentos correm o risco de, se não forem canalizadas as demandas e seguirmos no sistema representativo, ficarem na simples contestação. E é triste, porque geram muita expectativa e depois não se consolidam. Portanto, o importante é se desenvolver para consolidar essa força, ter conquistas concretas... Por exemplo, quando se diz que o movimento 15-M (Indignados) da Espanha não obteve nada, se está mentindo, porque conseguiram grandes coisas, no tema das hipotecas (evitando despejos), na mobilização, no poder de associativismo, vertebrou uma iniciativa social, e isso é fundamental, ter força, esse dinamismo da sociedade.
JC – Qual o estágio da investigação dos crimes de Franco?
Garzón – Zero. Existe uma decisão da Corte Suprema dizendo que não se deve investigar. A sociedade de vítimas está tentando criar uma comissão da verdade; conseguiu uma Lei de Memória Histórica muito pequena, baseada na reparação econômica e simbólica. Mas nada de justiça. Agora, 78 anos depois do início da Guerra Civil Espanhola, começa a haver alguns movimentos, mas do Estado, nenhum.

Perfil

Baltasar Garzón Real, 58 anos, nasceu em Torres, no Sul da Espanha. Formou-se em Direito pela Universidade de Sevilha, em 1979, e ingressou no Judiciário em 1980. Destacou-se em casos de combate ao narcotráfico e ao terrorismo. Em 1993, licenciou-se para se candidatar a deputado, elegendo-se pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Foi secretário de Estado para o Plano Nacional sobre Drogas. Aplicando o princípio da jurisdição universal, processou e obteve a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet por crimes de lesa-humanidade, em 1998. Dez anos mais tarde, começou a investigar delitos do ditador espanhol Francisco Franco, até ser impedido pela Corte Suprema. Em 2012, o mesmo tribunal o afastou da sua função de juiz, por considerar ilegais as escutas da investigação de corrupção do Partido Popular, que governa a Espanha. Garzón contesta a decisão no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Atua como advogado e colabora em diversas instituições internacionais na Europa e América Latina, entre elas a Unesco e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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