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Entrevista Especial

- Publicada em 31 de Março de 2014 às 00:00

‘Falta punir quem torturou para fazer a justiça de transição’, diz Guazzelli


MARCOS NAGELSTEIN/JC
Jornal do Comércio
O coordenador da Comissão Estadual da Verdade (CEV), Carlos Frederico Guazzelli, entende que o Brasil precisa dar mais um passo em busca da “justiça de transição”, para completar o processo de redemocratização iniciado em 1985. Guazzelli, que é defensor público do Estado, diz que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e as comissões auxiliares têm conseguido estabelecer “dois pés” do tripé que sustenta a “justiça de transição”: a memória e a verdade.
O coordenador da Comissão Estadual da Verdade (CEV), Carlos Frederico Guazzelli, entende que o Brasil precisa dar mais um passo em busca da “justiça de transição”, para completar o processo de redemocratização iniciado em 1985. Guazzelli, que é defensor público do Estado, diz que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e as comissões auxiliares têm conseguido estabelecer “dois pés” do tripé que sustenta a “justiça de transição”: a memória e a verdade.
Para ele, ao final dos trabalhos da CNV, ainda haverá a necessidade de se constituir a última parte do tripé: a justiça, que só virá com a condenação dos que cometeram “terrorismo de Estado”, isto é, aqueles que torturaram e mataram os opositores do regime militar instaurado na virada de 31 de março para 1 de abril de 1964. Guazzelli diz-se otimista com a possibilidade de revisão da Lei de Anistia e afirma que ela não foi fruto de um acordo, além de ter beneficiado apenas os criminosos que estavam a serviço do Estado. “O lado daqueles que resistiram ou se opuseram à ditadura, já foi julgado junto aos tribunais militares.”
O prazo para a conclusão dos trabalhos da CNV foi prorrogado para 13 de dezembro, bem como o da CEV, que já ouviu e registrou cerca de 60 depoimentos de ex-presos políticos que sofreram graves violações aos direitos humanos, tendo realizado sete audiências públicas, além de seções fechadas. Também integram a CEV o juiz de Direito Aramis Nassif, a cientista política Céli Pinto e o teólogo Oneide Bobsin. O procurador aposentado Jacques Távora Alfonsin desligou-se da comissão no ano passado, por motivos pessoais.
Jornal do Comércio - A anistia no Brasil foi ampla, geral e irrestrita?
Carlos Frederico Guazzelli - Não. Costumam dizer: “Ah, por que as comissões da verdade investigam um lado só?”.  É que só há um lado a investigar, porque o lado daqueles que resistiram ou se opuseram à ditadura já foi julgado junto aos tribunais militares. As pessoas eram presas pela polícia política, pelo sistema de repressão política, que era centralizado pelo Exército, que comandava nos DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) estaduais e federais ou diretamente nos DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operação de Defesa Interna). Depois dessa fase inicial de prisão, onde sequer a Justiça podia mexer, porque era a autoridade policial que controlava, por lei, tinha direito de ficar por 30 dias com a pessoa presa lá, prorrogava por mais 30 dias.  Essa era a fase onde eram torturados, onde eram massacrados, mas depois, essas pessoas eram processadas por crime a segurança nacional. Muitos foram condenados, como a presidenta Dilma (Rousseff, PT) e seu companheiro, o Carlos Araújo, e cumpriram a pena. Essa é a primeira questão, “porque não há dois lados”. Porque aquele lado que se autoanistiou, que processou os seus oponentes, se autoanistiou e nunca respondeu pelos crimes que cometeu.
JC - Ex-presos políticos, familiares e amigos de pessoas que foram torturadas e mortas durante a ditadura têm pedido punição aos responsáveis por esses crimes. O trabalho da CNV e das comissões como a do Rio Grande do Sul pode desencadear algum tipo de punição para quem cometeu crimes de Estado?
Guazzelli - Espero que sim. Mas a criação da Comissão Nacional da Verdade e das comissões estaduais e, em alguns casos, até municipais, a pedido da CNV para auxiliá-la, já é extraordinária porque colocou esse assunto na pauta. A comissão está a toda hora na mídia, estão aparecendo a inquirição do (Carlos Alberto) Brilhante Ustra, as declarações da causa da morte do (jornalista Vladimir) Herzog, o coronel Molinas (Júlio Miguel Molinas Dias), que apareceu aqui a preservação desse documento que permitiu que se levantasse a farsa do Rubens Paiva, que se descobrisse, já se sabia, mas não estava provado, que ele foi morto nas dependências do Exército. Tudo isso não seria possível se não fosse a criação da CNV. Espera-se esse terceiro passo, porque essa área que nós estamos tratando, se chama justiça de transição, que é a passagem de um regime autoritário, ditatorial para um regime democrático. Essa passagem, que no Brasil não está completada, foi feita na África do Sul, na Alemanha depois da incorporação da chamada Alemanha Oriental, na Argentina, no Uruguai e no Chile.
JC - Quando começa este processo de justiça de transição?
Guazzelli - Esse processo começou em 1985, ainda durante a fase de transição da ditadura para o regime plenamente democrático, cujo marco é a Constituição de 1988. Então em 1985, já no governo (José) Sarney (PMDB), foi criada a Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos, que fez o levantamento que resultou no livro “Brasil nunca mais”, que é a relação dos mortos, desaparecidos, dos torturadores. Esse foi o primeiro passo, uma lei inclusive que criou isso. O segundo passo é no final do segundo governo do Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 2002, com a criação da Comissão da Anistia, do Ministério da Justiça, que faz um trabalho excelente também. E o terceiro passo é a criação, em 2011, da Comissão Nacional da Verdade, até por uma determinação da sentença que condenou o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Então, esses três passos preenchem aquilo que são as três pernas do tripé: memória, verdade, e falta a justiça. Então justiça de transição tem essas três pernas, ou seja, memória, reconstituir historicamente o que aconteceu pelos sobreviventes, pelas testemunhas; verdade, completar e reconstituir a verdade, que até então só tinha a verdade oficial do regime anterior; e a terceira etapa que é a justiça, que é a responsabilização dos criminosos, dos responsáveis pelos crimes que apareceram. Essa é a parte que está faltando, para a qual, a CNV e as suas comissões parceiras serão fundamentais.
JC - Em depoimento na CNV, o coronel Paulo Malhães reconheceu que torturou, matou e descreveu detalhes da crueldade e da mutilação de corpos.
Guazzelli - Esse cidadão, Paulo Malhães, foi o capitão responsável, ele e um outro militar, com a sua vinda ao Rio Grande do Sul, em abril de 1970, pela introdução de técnicas de tortura que aprendeu na Escola das Américas, no Panamá, que era financiada pelos Estados Unidos, é claro, e formou toda essa geração de militares torturadores da América Latina. A vinda desse cidadão é fundamental para dizimar todos os grupos de luta clandestina no Rio Grande do Sul. É muito importante referir que, nesses grupos, alguns se dedicavam à luta armada, VAR-Palmares, VPR, Aliança Libertadora Nacional, M3G, enfim, várias dessas entidades se dedicaram, outras não. O POC, Partido Operário Comunista, fazia trabalho político, o PCdoB não tinha feito ainda opção pela guerrilha rural no Araguaia. No Brasil, fazia trabalho político urbano. A AP (Ação Popular) que era uma importantíssima organização de origem religiosa, veio da Igreja Católica, veio da Juventude Universitária Católica, esses faziam um trabalho político. Eram da luta clandestina, mas não armada. Esses grupos todos foram dizimados a partir da vinda desse capitão.
JC - Como?
Guazzelli - O capitão Malhães, mediante modernas técnicas de tortura, especialmente a maricota, que até então não se usava, que é a máquina de dar choque elétrico, com alta voltagem, mas com baixa amperagem, razão pela qual não mata, desorganiza o cérebro, causa dor terrível, mas não mata, a não ser que a pessoa tenha uma doença pré-existente, como o Amarildo (pedreiro morto pela Polícia Militar na Unidade de Polícia Pacificadora da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em julho de 2013). Por isso que a professora Céli Pinto, quando é questionada, “por que a Comissão da Verdade fica escarafunchando o passado?”, responde que não estamos escarafunchando o passado. Foi porque o Brasil não fez justiça de transição que sua polícia continua utilizando métodos de tortura que aprendeu durante a ditadura e que aperfeiçoou na ditadura.
JC – Por que Malhães parece não se importar com as consequências de seu depoimento?
Guazzelli - Porque ele tem esse sentimento de impunidade.
JC - Por que continua impune?
Guazzelli - Bom, porque primeiro, em 1974, ele estava no gabinete do ministro do Exército. Então, esse sujeito era um cara que sabia muito, estava dentro do sistema. Esse sistema até hoje foi intocado, ele tem 74 anos e julga que vai seguir intocado, até mesmo porque houve o questionamento da Lei da Anistia, por um a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), movida pela OAB. A OAB sustentou na ação, que juridicamente é irretocável, é que se a Constituição brasileira diz que os crimes de tortura e de lesa-humanidade são imprescritíveis, insuscetíveis de anistia, indulto ou graça - está expresso na Constituição -, então aquela lei não foi recepcionada (não tem validade). O ministro Eros Grau, nessa decisão vergonhosa e que foi seguida pela maioria, e que não é definitiva ainda, disse: “Não, a Lei da Anistia, como foi uma lei política específica para justificar um acordo, então, não se faz esse juízo”. Eu não gosto de usar essa expressão porque acho que rebaixa o debate, mas nesse caso vou usar: isso é uma mentira.
JC - Por quê?
Guazzelli - A Lei da Anistia não foi fruto de acordo, não houve acordo nenhum. A Anistia que o MDB queria e também a maioria da população brasileira era uma anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos pelo regime. E a Arena derrotou o MDB. Essa Lei de Anistia de 1979 não é fruto de acordo coisa nenhuma, ela foi ganha no voto, naquela época e ela fez o quê? A anistia ampla, geral e irrestrita para os torturadores, para os chamados crimes conexos, e a anistia limitada para os opositores do regime, porque aqueles que se levantaram contra o regime e praticaram crimes usando violência ou grave ameaça a pessoa, como é o caso de roubo, por exemplo, não foram anistiados.  Carlos Araújo não foi anistiado, a Dilma não foi anistiada, embora a Dilma não tenha participado de ação armada.
JC - É otimista com relação à revisão desta lei?
Guazzelli - Não é que eu seja otimista dizendo que vai acontecer, estou dizendo que pode acontecer. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, já disse que ele não participou daquele julgamento, que não se sente vinculado àquela decisão. Ele acha que deve ser revisada. O Ministério Público Federal, depois da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) - e os crimes de lesa-humanidade são de competência federal -, os promotores do MP estão processando as pessoas. O Malhães vai ser processado, não tenho a menor dúvida. Já foi oferecida a denúncia, por exemplo, contra as pessoas responsáveis, que ainda estão vivas, pela ação do Rio Centro (atentado malsucedido executado por militares em 1981, no Rio de Janeiro). O juiz federal recebeu a denúncia. Ao receber a denúncia, o juiz quer dizer ‘isso é razoável, vamos processar o fulano’. Tem outras duas denúncias recebidas pelas mortes do Araguaia depois da decisão da CIDH. Claro que a defesa desses réus vai questionar e isso vai parar no Supremo de novo.
JC - Qual a perspectiva?
Guazzelli - Aí é importante o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, fazendo a descrição dessas barbaridades, que não foram poucas. Foram milhares e milhares de pessoas torturadas, presas... Dizem que o número de mortos é menor do que nas outras ditaduras (do Cone Sul), mas nós temos, já provado, mais de 60 mil torturados. Pessoas que foram à Comissão Nacional da Anistia e provaram a tortura. Mais de 60 mil, é o dobro dos mortos na Argentina. Pessoas torturadas, de onde resultaram traumas, incapacitações, mortes... Isso é muito sério e tem de ser levado para os tribunais. Só quando isso for levado aos tribunais teremos completado o processo de justiça de transição.
JC - O regime militar definia como terroristas os que se contrapunham à ditadura. Naquela situação, a resistência pode ser considerada legal?
Guazzelli - Se o regime é fruto da ilegalidade, é fruto de um golpe de Estado, fruto da deposição arbitrária dos governantes, rasga uma Constituição, a resistência a ele é legítima. Isso quem diz não são os textos marxistas, são os grandes textos fundadores do liberalismo, de John Locke, de Thomas Hobbes, de (Jean-Jacques) Rousseau, de São Tomás de Aquino... Na resistência contra o tirano, São Tomás de Aquino dizia “só resta ir aos céus”, um eufemismo para revolta. Ato de terrorismo é o ato em que não há ataque ao adversário, e sim a estranhos, ao povo, como no caso das Torres Gêmeas (11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos). Não houve ataque ao Estado norte-americano, mas a civis, para espalhar o terror. E existe uma coisa chamada terror de Estado, que é o que o Estado brasileiro fez. Terrorista era o Malhães, que quando torturava pessoas, tinha um efeito irradiador. Os que resistiram à ditadura não praticaram terrorismo.

Perfil

Carlos Frederico Guazzelli  tem 60 anos. Natural de Porto Alegre, é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Filho do advogado Eloar Guazzelli, iniciou a trajetória profissional no escritório do pai, organizando o arquivo que continha o registro dos casos de militantes gaúchos julgados durante a repressão. Depois de advogar e se dedicar à docência acadêmica, Guazzelli assumiu o cargo de defensor público do Estado em 1994, onde atua na 5ª Câmara Criminal. Desde 2012, coordena a Comissão Estadual da Verdade (CEV) do Rio Grande do Sul. O legado dessa atuação persiste não só no trabalho de busca pela verdade, que passa pelos arquivos organizados no início da carreira, mas também na gratidão de presos que foram defendidos por Eloar Guazzelli, entre eles o hoje deputado estadual Raul Pont (PT) e o ex-deputado Carlos Araújo (PDT), que deixaram de lembrança ao advogado um quadro assinado por vários presos como manifestação de agradecimento. O presente é uma das heranças que Guazzelli guarda com muito orgulho.
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