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crimes de trânsito

- Publicada em 05 de Dezembro de 2017 às 22:41

Uma dor que convive com a sensação de impunidade

Relatos de pais que perderam seus filhos: Rodrigues, Lígia e Arizoli Rocha e Diza Gonzaga

Relatos de pais que perderam seus filhos: Rodrigues, Lígia e Arizoli Rocha e Diza Gonzaga


Jonathan Heckler/Arquivo/JC/Claiton Dornelles/Natacha Gastal/Divulgação/JC
Enquanto juristas, promotores e delegados aguardam uma legislação menos branda para os casos de crimes no trânsito, famílias destroçadas pela perda de um familiar esperam ainda mais ansiosas para que, ao menos, a justiça seja feita. Nesta terceira e última reportagem da série sobre crimes de trânsito, o Jornal do Comércio conversou com três famílias que perderam seus filhos de forma trágica. Para pais e mães, a perda nunca será superada; o que eles esperam é que a Justiça puna esses motoristas, para que outras pessoas não passem pela mesma dor nem convivam diariamente com um sentimento de impotência diante da impunidade.
Enquanto juristas, promotores e delegados aguardam uma legislação menos branda para os casos de crimes no trânsito, famílias destroçadas pela perda de um familiar esperam ainda mais ansiosas para que, ao menos, a justiça seja feita. Nesta terceira e última reportagem da série sobre crimes de trânsito, o Jornal do Comércio conversou com três famílias que perderam seus filhos de forma trágica. Para pais e mães, a perda nunca será superada; o que eles esperam é que a Justiça puna esses motoristas, para que outras pessoas não passem pela mesma dor nem convivam diariamente com um sentimento de impotência diante da impunidade.

Clóvis Rodrigues, pai da Mariana, 11 anos

Filha de Rodrigues foi atropelada praticamente na porta de casa, e família doou órgãos

Filha de Rodrigues foi atropelada praticamente na porta de casa, e família doou órgãos


CLAITON DORNELLES /JC
É quase impossível conversar com o pai de uma menina de 11 anos - que teve a vida interrompida por um condutor embriagado que dirigia em alta velocidade em uma área residencial - e passar ileso. Ouvir a história de Clóvis Rodrigues sobre sua única filha, Mariana, é ver materializada diante dos olhos a dor pela impunidade.
Mariana chegou ao casal Clóvis e Nara como um presente de Natal, no dia 24 de dezembro de 1997. Onze anos e nove meses depois, na manhã do dia 19 de setembro de 2009, sua trajetória foi interrompida. Ao sair da escola, a menina se distraiu conversando com as amigas e perdeu a van que a levaria para casa.
Já dentro do ônibus, ligou para o pai e avisou que estava a caminho de casa, no bairro Sarandi, zona Norte de Porto Alegre. Ao descer do coletivo, 30 minutos depois, o motorista esperou ela atravessar a rua, mas a pequena foi surpreendida por um carro em alta velocidade e acabou sendo atropelada praticamente na porta de casa.
O celular de Clóvis tocou novamente, mas não era Mariana, a menina apaixonada por andar de roller e por brincar com Lola, a cadelinha de estimação. Era uma voz estranha perguntando ao pai se ele a conhecia. Sem entender nada, Clóvis ouviu a palavra "acidente" e que Mariana estava sendo levada para o Hospital Cristo Redentor. Imaginava que a filha teria apenas quebrado uma perna ou arranhado um braço.
No hospital, ele e a esposa Nara se depararam com outra realidade: Mari estava em coma. Dois dias depois, o médico informou a morte cerebral. Os aparelhos foram desligados, e a família decidiu salvar outras vidas, doando os órgãos da menina.
"Existe um culpado. A culpa não é dos pais, e muito menos dela. No caso da Mari, o atropelador faleceu uns seis meses depois, e a justiça não foi feita. Ele não poderia estar dirigindo, pois estava com a carteira suspensa, além dos sinais de embriaguez. O que pensar de tudo isso? Ela nunca mais voltará", recorda.
Alguns meses depois, os pais conheceram a Fundação Thiago Gonzaga - Vida Urgente. A fundação surgiu como um alento e uma forma de enxergarem que não estão sozinhos nesta luta. "Juntos, parecemos mais fortes e nos auxiliamos", conta. A esposa, mais tímida, acompanha as reuniões semanais. Já Clóvis, além dos encontros com o grupo de apoio, faz parte do Coral Vida Urgente, formado por pais que, assim como ele, tentam superar a falta dos filhos.
Hoje, o trabalho da família da Mariana é conscientizar jovens para que, assim como a menina, não tenham suas vidas interrompidas na brutalidade do trânsito. Ações de educação em escolas, saídas de festas e apoio a outros pais que perderam seus filhos fazem parte do dia a dia. "A gente tem que se expor. Precisamos usar a nossa dor para que isso não ocorra com outras pessoas. Mexer na ferida dói, mas é por uma boa causa", afirma.

Lígia e Arizoli Rocha, pais do Carlos Henrique, 25 anos

Arizoli e Lígia querem justiça para o filho, morto em 2017, após ser atropelado por um motorista embriagado

Arizoli e Lígia querem justiça para o filho, morto em 2017, após ser atropelado por um motorista embriagado


JONATHAN HECKLER/JC
Um jovem que acreditava em um mundo mais humano, no qual as pessoas valorizassem mais o ser do que o ter. Assim era Carlos Henrique Müller Rocha, de 25 anos. Na noite do dia 21 de março deste ano, ele pegou o skate e foi até uma loja de conveniências na avenida Icaraí, na zona Sul da Capital, próximo de onde morava com os pais. Ao retornar para casa, foi atingido em cima da ciclofaixa pelo carro conduzido pelo corretor de imóveis Jander Torres, de 50 anos, que estava embriagado, com a carteira de habilitação suspensa e em alta velocidade. Carlos Henrique morreu no asfalto. O infrator fugiu, mas acabou preso após colidir em uma casa.
Para os pais, passados nove meses da tragédia, o sentimento de injustiça e impunidade se mistura com a dor da falta do filho. Dona Lígia ainda lembra com orgulho do pensamento libertário do filho e dos planos que o jovem tinha de escrever um livro. "Violeiro, compositor, escritor, um cara cheio de ideias boas. Agora, a gente fica esperando que a justiça se faça, mas eu estou achando que... não sei", suspira a mãe do rapaz. "O que ele (o atropelador) fez com o Henrique não tem explicação."
Lígia conta que um dos advogados de Jander os procurou, pois seu cliente gostaria muito de conversar com ambos. "Mas falar o quê? O próprio advogado disse que talvez não fosse a hora. E eu reforcei: não é agora e não será nunca. O que ele me tirou, nunca vai me devolver. Perdoá-lo é uma coisa que nunca vai acontecer", afirma a mãe.
A revolta de Lígia por saber que o responsável pela morte do filho foi solto dois meses após o atropelamento ainda dói. "O advogado pediu, e o juiz concedeu o habeas corpus", conta. "Eles (advogados) já tentaram duas vezes passar o crime de doloso para culposo, mas isso o juiz não deu", comemora.
Pai de Carlos Henrique, Arizoli Rocha aos poucos vai conseguindo lidar com a perda e deixando para trás o desejo de vingança. Para ele, a Fundação Thiago Gonzaga tem um papel fundamental para que possam conviver com esse sentimento da ausência. "Sou bombeiro e participei do resgate das vítimas da boate Kiss. Transportamos mais de 40 pessoas para Porto Alegre. Não é fácil, mas quando a dor é com a gente, é muito mais difícil. O que nos resta é esperar pela Justiça", relata, com a voz embargada.

Diza Gonzaga, mãe do Thiago, 18 anos

Para Diza Gonzaga, nesses 20 anos de atuação, a Lei Seca foi o maior benefício para a legislação de trânsito

Para Diza Gonzaga, nesses 20 anos de atuação, a Lei Seca foi o maior benefício para a legislação de trânsito


NATACHA GASTAL/DIVULGAÇÃO/JC
Quem anda pelas ruas de Porto Alegre e se depara com uma borboleta pintada no asfalto logo pensa em uma vida que se foi. Há 22 anos, a Fundação Thiago Gonzaga - Vida Urgente vem lutando por melhorias na legislação de trânsito do Brasil, conscientizando pessoas e amparando pais que, assim como Diza e Régis Gonzaga, perderam seus filhos.
Thiago havia completado 18 anos uma semana antes da madrugada de 20 de maio de 1995. Ao voltar de uma festa, o carro em que pegava carona chocou-se contra um contêiner colocado irregularmente em uma avenida da Capital. Dos três jovens que estavam no veículo, apenas um sobreviveu.
A partir da dor pela morte do jovem, os pais decidiram criar a Vida Urgente, que promove ações de conscientização, valorização da vida e programas educativos ligados ao trânsito, além de realizar um trabalho com pais que perderam filhos.
"Quando começamos, este Código de Trânsito Brasileiro não existia. Passados 20 anos, ele já é bem mais avançado do que quando foi adotado, em 1997, principalmente do ponto de vista da punição, embora, na prática, ainda se tenham poucas leis para essa impunidade. Crimes ainda são tratados apenas como acidentes", ressalta Diza. E ela exemplifica: "Uma pessoa embriagada atropela e mata outras pessoas em cima de uma calçada. Isso não pode ser tratado como acidente, tem que ser ao menos doloso. A pessoa teve intenção, assumiu o risco", argumenta.
Entre os pontos positivos da legislação, Diza comemora o surgimento da chamada Lei Seca (Lei nº 11.705, de 2008 - ou Lei da Vida, como prefere -, que, nos primeiros 30 dias em vigor, levou à redução de mais de 40% nas internações em pronto-atendimentos no Brasil. "Não são apenas números frios, são 40% a mais de vidas."