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Geral

- Publicada em 05 de Novembro de 2017 às 22:09

'Função social da propriedade não é aplicada até hoje'

Coordenadora do MTST, Cláudia Fávaro milita pelo direito à moradia

Coordenadora do MTST, Cláudia Fávaro milita pelo direito à moradia


JONATHAN HECKLER/jc
Isabella Sander
Arquiteta e coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Cláudia Fávaro milita pelo direito à moradia na área urbana há dez anos. Em entrevista ao Jornal do Comércio, a ativista enfatizou a exclusão sofrida pelo indivíduo que não tem onde morar no Brasil. "Mesmo assim, ele precisa morar em algum lugar, e é assim que começam as ocupações", explica. Segundo Cláudia, o direito à moradia é absoluto, ao contrário do direito à propriedade, que depende da função social. Esse conceito, existente desde a Constituição Federal de 1988, para a arquiteta, nunca foi aplicado de fato.
Arquiteta e coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Cláudia Fávaro milita pelo direito à moradia na área urbana há dez anos. Em entrevista ao Jornal do Comércio, a ativista enfatizou a exclusão sofrida pelo indivíduo que não tem onde morar no Brasil. "Mesmo assim, ele precisa morar em algum lugar, e é assim que começam as ocupações", explica. Segundo Cláudia, o direito à moradia é absoluto, ao contrário do direito à propriedade, que depende da função social. Esse conceito, existente desde a Constituição Federal de 1988, para a arquiteta, nunca foi aplicado de fato.
Jornal do Comércio - Do que decorrem os conflitos fundiários?
Cláudia Fávaro - A terra é um ativo econômico muito importante na sociedade, pois está ligada à propriedade, que é um dos conceitos básicos do capitalismo e do sistema que vivemos. É através da propriedade que as relações se reproduzem: ou se possui, ou não se possui. Quando não possui, a pessoa é excluída da sociedade. Do ponto de vista da habitação, quando não se tem onde morar, mesmo assim é preciso morar em algum lugar. Se eu estiver embaixo do viaduto Otávio Rocha, sem ter para onde ir, com poucas cobertas, fome e frio, a primeira coisa que eu vou querer é uma casa, para começar a me sentir gente. Se a sociedade exclui a pessoa a ponto de ela não ter moradia, mesmo através de financiamento ou parcelas para adquirir um terreno, essa pessoa vai ter que morar em algum lugar, e aí a terra que está ociosa e não está cumprindo a sua função social passa a estar em disputa.
JC - É nesse contexto que começam as ocupações?
Cláudia - Sim. As pessoas se veem forçadas a ocupar. Ninguém ocupa porque quer ou acha que é certo. Quer dizer, é certo porque tem pouca gente concentrando muito e muita gente que não tem nada, então é justo retomar essa terra que lhe foi tirada - e lhe foi tirada mesmo, porque sabemos que o Brasil era habitado por diversas comunidades que estavam aqui muito antes de os brancos ocuparem e ditarem de quem seriam essas terras. Desde as Capitanias Hereditárias, a maioria do parcelamento de terras foi feita por grilagem de gente que se apropriava de terras que não eram suas. Isso é muito cultural na nossa sociedade, então retomar a terra, reivindicar a ocupação dela e garantir um direito humano básico, que está na Constituição, é o mínimo a se fazer quando se é privado disso.
JC - Mas o direito à propriedade também está na Constituição.
Cláudia - Sim, mas o direito à moradia é absoluto: todo ser humano tem. O direito à propriedade é subjugado a uma segunda questão, que é o cumprimento da função social da propriedade. Se tu tens uma propriedade que não está cumprindo sua função social, ela pode ser retirada do proprietário. Não é porque está na escritura que ela é absoluta. Porém, o que acontece, principalmente entre juízes, é que essa parte da lei não é muito interessante de ser reconhecida e, na maioria dos despachos de reintegração de posse, a função social sequer é citada. Aí a gente entra num problema da legislação brasileira.
JC - Qual a efetividade do conceito de função social atualmente?
Cláudia - Apesar de a função social da propriedade ser lei desde a Constituição de 1988, não se aplica até hoje. A falta de direitos e a desigualdade social não são consequências da falta de legislação. No Brasil, temos uma das leis mais avançadas do mundo na área de regulação urbana, que é o Estatuto das Cidades, e ele simplesmente não é aplicado. Regular o solo urbano, do ponto de vista de redistribuir a cidade, não seria oneroso para a classe média e a classe alta, que acabam pagando com a violência. A desigualdade social e a construção de uma cidade com muros, que separam os ricos dos pobres, só fazem com que a classe excluída se revolte e acirre a luta de classes. Essa reação vai acontecer, porque essa pessoa tem frio, fome e sede. O que tu serias capaz de fazer para te aquecer e comer?
JC - O problema da moradia tende a piorar?
Cláudia - Com certeza, especialmente diante da crise econômica. Temos um modelo de desenvolvimento de sociedade que priorizou grandes obras, duplicação de avenidas e, com isso, aumenta o preço da terra e o poder público expulsa dos centros urbanos quem não tem condições de pagar. É o que está acontecendo com as vilas Dique e Nazaré, em Porto Alegre, por exemplo. A ocupação Lanceiros Negros veio com outra perspectiva de atuação, que é a disputa pelo Centro. O lugar onde se mora se tornou uma forma de reprodução de capital, na qual a cidade deixa de ter um valor de uso e começa a ter único e exclusivamente um valor de troca, sempre favorecendo grandes grupos empresariais e grandes construtoras, com condições de ter acesso à terra que está no mercado.
JC - Qual o impacto do programa Minha Casa Minha Vida no déficit habitacional?
Cláudia - O Minha Casa Minha Vida tentou redistribuir esse estoque de habitações. Desde o Banco Nacional de Habitações - que existiu de 1964 a 1986 - não se tinha um programa habitacional com um aporte de recursos financeiros tão grande. Mais de 2 milhões de moradias foram construídas, mas, mesmo assim, o déficit não baixou. Temos um déficit habitacional que beira as 7 milhões de moradias, construímos 2 milhões de habitações e não conseguimos reduzir o déficit, ou seja, atacamos muito pouco no problema real: menos de 10% das casas construídas foram para pessoas de baixa renda. O que se fez foi um programa de desenvolvimento econômico, e não de moradia - que gera empregos, beneficia grandes construtoras - e vimos o que essa relação promíscua com as construtoras fez com o nosso país.
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