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Direito à terra

- Publicada em 05 de Setembro de 2017 às 08:30

Divisão de territórios é desigual desde o descobrimento do Brasil

Ocupações, grilagem, reforma agrária, conflitos fundiários e tantos outros termos relativos recheiam os noticiários atuais. A distribuição desigual da terra, no entanto, está longe de ser um assunto novo no Brasil. Surgiu com a vinda dos portugueses, que lotearam o País e o transformaram em capitanias hereditárias, comandadas pela nobreza vinda da Europa. O sistema durou quase 300 anos, até a independência do Brasil. Na época, já era feita distinção entre quem tinha a posse (autorização para usar o espaço) e a propriedade (possuía a escritura do terreno) - o Estado brasileiro era proprietário das terras, mas os donatários das capitanias usavam as áreas para produção agropecuária.
Ocupações, grilagem, reforma agrária, conflitos fundiários e tantos outros termos relativos recheiam os noticiários atuais. A distribuição desigual da terra, no entanto, está longe de ser um assunto novo no Brasil. Surgiu com a vinda dos portugueses, que lotearam o País e o transformaram em capitanias hereditárias, comandadas pela nobreza vinda da Europa. O sistema durou quase 300 anos, até a independência do Brasil. Na época, já era feita distinção entre quem tinha a posse (autorização para usar o espaço) e a propriedade (possuía a escritura do terreno) - o Estado brasileiro era proprietário das terras, mas os donatários das capitanias usavam as áreas para produção agropecuária.
Vinte e oito anos depois do fim das capitanias, foi criada a Lei de Terras, estabelecendo a compra como a única forma de acesso à terra. "Não podemos ver a cidade como um snapshot, um retrato de um processo recente. Esse cenário vem se construindo há séculos, com base na distribuição desigual", afirma Raquel Ludermir, arquiteta da Organização Não Governamental (ONG) Habitat para a Humanidade e da Campanha Terra Segura.
Com a Lei de Terras, em 1850, e a abolição da escravatura, em 1888, os escravos recém-libertos não tinham lugar nem para morar nem para trabalhar. O momento era de completa ausência de política habitacional. A única alternativa foi ocupar a terra e construir casas de forma ilegal. 
As cidades se desenvolveram em cima dessa base desigual. "As famílias mais pobres ocuparam as áreas mais frágeis que não eram de interesse do mercado, como morros e áreas alagadas. Porém, com o crescimento das cidades, as zonas que antes não eram interessantes passaram a ser áreas estratégicas e centrais", relata Raquel. Dessa maneira, surgiram os assentamentos informais, hoje conhecidos como ocupações.
O mapeamento do processo histórico também foi o ponto de partida do estudo do Climate Policy Initiative sobre os direitos de propriedade no Brasil rural. A responsável pela pesquisa, a advogada e analista sênior da entidade, Joana Chiavari, aponta o Estatuto da Terra, de 1964, como base para os princípios da reforma agrária e marco da discussão social. 
No entanto, foi somente com a Constituição Federal de 1988 que se consolidou à democratização do acesso à terra, a priorização da função social, da demarcação de áreas indígenas e da instituição de áreas protegidas. A Carta Magna também foi a primeira a tratar da questão urbana, em um período no qual as cidades já abrigavam mais de 80% de toda a população brasileiras.

Brasil tem apenas 67% de seu território mapeado

Se nas áreas urbanas a ausência do Estado já é sentida, no meio rural a situação é muito pior. Apenas 67% do País está georreferenciado, segundo o presidente do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Leonardo Góes. O resultado é a ocorrência de graves conflitos agrários, muitas vezes com mortes.
Em estudo com dados de 1985 a 2017, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontou 45 massacres em áreas rurais, que vitimaram 214 pessoas em nove estados brasileiros. No Rio Grande do Sul, foram registrados dois casos, um entre Sarandi e Passo Fundo, em 1987, quando três agricultores morreram atropelados por um caminhoneiro, e outro em Salto do Jacuí, em 1989, quando seis crianças morreram após um avião que jogava agrotóxicos em lavouras de soja esguichar o veneno em cima delas.
Em 2017, três massacres em um mês reacenderam a preocupação com os conflitos envolvendo demarcação de terras. Os casos de Colniza (MT), em 19 de abril, Vilhena (RR), em 29 de abril, e Pau D'Arco (PA), em 24 de maio, deixaram 22 mortos.
"Temos mais de um massacre por ano, a maioria com trabalhadores sem terra ou posseiros, pessoas que lutam por terra ou que tiveram suas terras tomadas, ou pertencentes a ocupações", cita Thiago Valentim, coordenador nacional da CPT. 
A comissão está organizando mais um levantamento, referente à impunidade nesse tipo de crime. "As pessoas não são julgadas, inquéritos por vezes nem são abertos, ou ficam pelo caminho, porque tem toda uma força política por trás desses crimes", pontua. Eventualmente, quem executa o crime é punido. "Mas nunca chega nos mandantes."
O motivo da impunidade, segundo Valentim, é a falta de representatividade do trabalhador rural na política, e os massacres se devem a processos de demarcação de terra que se arrastam. "O governo tem culpa disso. Não pune os culpados e não demarca", diz, atribuindo responsabilidade também ao Judiciário, o qual considera omisso.

Sobreposição de registros e cadastros de áreas rurais agrava conflitos fundiários

A sobreposição dos cadastros e registros de áreas rurais agrava os conflitos, conforme o coordenador da CPT, Thiago Valentim. "A grilagem é muito forte no Brasil, especialmente na Amazônia. Se houvesse interesse do governo em intensificar a busca de quem são as terras, poderíamos acelerar os processos para uma regularização fundiária justa", defende. 
O Climate Policy Initiative (CPI) averiguou que há cinco tipos de registros e cadastros que envolvem os imóveis rurais brasileiros: o Registro Geral de Imóveis (RGI), o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), administrado pelo Incra, o Cadastro de Imóveis Rurais (Cafir), administrado pela Secretaria Nacional da Receita Federal, o Ato Declaratório Ambiental (ADA), administrado pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), administrado pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Os registros não têm integração entre si.
Entre os cadastros de bens imóveis da União, há oito tipos, também geridos por entidades diferentes. O cadastro pode ser de terra indígena, terreno da Marinha, marginal ou de várzea, floresta pública, unidade de conservação, assentamento de reforma agrária, programa Terra Legal, área militar ou terra devoluta discriminada. O problema encontrado pelo CPI é que há uma grande sobreposição dos cadastros, envolvendo, ainda, áreas de propriedade privada. "Procuramos mapear a legislação vigente e percebemos que um dos problemas é a grande quantidade de leis que regem a propriedade", esclarece Joana Chiavari, advogada e analista sênior da entidade.
A sobreposição causa insegurança no direito à propriedade em áreas de posse coletiva. "Um quarto da Amazônia Legal, por exemplo, é ocupada ilegalmente, e um quarto do Pará é ocupado por grilagem", afirma Joana. Para dar mais segurança, é preciso regularizar o que não está regularizado e simplificar o sistema de cadastros de posse de área pública. "Se a área é privada, é possível usar instrumentos como o pedido de reintegração de posse. Em áreas públicas, contudo, isso não existe. A garantia fica mais frágil. É preciso acionar o Incra."
A recomendação do CPI é integrar os cadastros. O Incra recentemente começou a trabalhar na implementação do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (Cnir), que reunirá os registros do RGI, do SNCR e do Cafir. Ainda é incerto se o ADA, o CAR e o Sistema Único do SPU integrarão o Cnir. "Esperamos que a implementação seja acelerada, para que seja o principal cadastro fundiário e ajude a criar uma base cartográfica única."
O CPI estima, com dados de 2006, que, entre as áreas privadas no Brasil, 37,7% têm uso agrícola. Cerca de 14% envolvem assentamento, 10,5% são áreas urbanas, 2% são unidades de conservação e 0,2% é referente a territórios quilombolas. "Com tudo o que mapeamos, ainda fica uma boa parte que não sabemos exatamente o que é. Não existem dados que envolvam todo o território brasileiro", critica. Da área total, mais da metade é pública. A predominância dos terrenos encontra-se na região Norte, especialmente na Amazônia.

País tem 6 milhões de famílias sem ter onde morar e mais de 7 milhões de imóveis vazios

Uma das principais demonstrações da desigualdade de acesso à terra em áreas urbanas é a falta de infraestrutura em espaços informais. "Problema com esgotamento, água, coleta de lixo, escolas, creches, equipamentos públicos e serviços no geral", cita a arquiteta Raquel.
Segundo ela, outro exemplo da iniquidade pode ser resumido pelo tradicional lema dos movimentos de luta pela moradia: "tanta casa sem gente, tanta gente sem casa". Dados de 2014 da Fundação João Pinheiro, do governo de Minas Gerais, indicam que naquele ano 6,06 milhões de famílias não tinham casa adequada para morar e, por outro lado, 7,24 milhões de imóveis estavam vazios no País. No Rio Grande do Sul, havia 214 mil famílias sem habitação e 427 mil residências abandonadas. "É muito claro que existem edifícios abandonados e terrenos baldios em meio a áreas estruturadas. Enquanto isso, muita gente mora em áreas sem infraestrutura, longe de serviços e empregos", pontua a arquiteta.
O fenômeno, de acordo com Raquel, é fruto de especulação imobiliária, na qual o dono do terreno espera a valorização do imóvel, enquanto investimentos públicos e privados são feitos na região. Com isso, a área não está cumprindo sua função social, condicionante para que o indivíduo mantenha sua propriedade. "Não é porque o sujeito é dono do local que pode fazer qualquer coisa, inclusive fazer nada e esperar que o terreno se valorize", afirma. Para a arquiteta a especulação configura, inclusive, enriquecimento ilícito.
 

Leis de proteção à função social são pouco aplicadas

Entre os instrumentos para evitar a disparidade entre residências vazias e pessoas sem moradia digna e garantir o cumprimento da função social do imóvel está a implantação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) Progressivo. O instrumento foi criado há tempos, junto com o Estatuto da Cidade, em 2001, e prevê o aumento progressivo da alíquota durante cinco anos, caso o terreno não esteja sendo utilizado ou esteja tendo muito pouco uso. Passado o período, se a situação não se resolver, o proprietário precisa tomar alguma atitude, sob risco de perder o imóvel.
Dezesseis anos depois, poucas cidades adotaram o sistema. "Tem se discutido, mas é difícil. Leva uns 15 anos para se destituir a propriedade, desde a notificação de progressão do imposto até a desapropriação", relata Raquel Ludermir.
O município de São Paulo chegou a fazer tentativas de implementação do IPTU progressivo na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), que ainda não tiveram continuidade no governo do atual prefeito, João Doria (PSDB). Em Porto Alegre, a prefeitura está trabalhando na atualização das alíquotas do imposto, porém ainda não fala em progressão por descumprimento da função social da propriedade.
Outro instrumento possível é a demarcação de Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis), para assentamentos habitacionais de populações de baixa renda. Em Porto Alegre, a ferramenta existe desde a instituição do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (Pddua), em 1999. Desde lá, foram criadas cerca de 50 áreas do tipo.
O marco legal já existe e, caso fosse de fato utilizado, o problema estaria resolvido. "Na teoria, já temos os instrumentos desde o Estatuto das Cidades, mas esbarramos em questões políticas e nos operadores da lei", argumenta Raquel.
Ocorre que os conflitos urbanos acabam judicializados. "Mas quem são os juízes? São homens brancos, proprietários de terras ou amigos deles", observa a arquiteta, que considera que muitas vezes os magistrados não reconhecem a importância dos instrumentos mais progressivos existentes na legislação, ou, até mesmo, desconhecem as ferramentas. O resultado são ações envolvendo Aeis e usucapião paradas por 20 anos no Judiciário. Um indivíduo pode obter a propriedade de um imóvel ou terreno privado através de usucapião, ao comprovar que está no local há pelo menos cinco anos sem ninguém reivindicar o espaço.

Acesso à terra é menor para mulheres

O menor acesso à terra por mulheres em relação a homens é tema da tese de doutorado de Raquel na Universidade Federal de Pernambuco. A arquiteta relaciona o fenômeno à falta de autonomia feminina nas finanças e sobre seu corpo. Na autonomia do corpo, o fato de o aborto ser proibido e não haver creches suficientes em assentamentos faz com que as mulheres trabalhem menos e fiquem mais em casa para cuidar de seus filhos, o que afeta diretamente sua autonomia financeira. Sem dinheiro, não conseguem alugar ou comprar um imóvel e ficam dependentes de um homem - irmão, pai ou marido. 
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015 aponta que a mulher tem rendimento médio mensal 25% menor do que os homens. Já em relação à ocupação, segundo dados de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), menos da metade delas (44,3%) tem algum trabalho, enquanto 61% dos homens têm ocupação.
Ganhando menos e atuando mais no mercado informal, as mulheres têm menos estabilidade e menos comprovações de renda e acabam pagando aluguéis mais caros, nos quais está incluído o risco de inadimplência. Em casos de herança, muitas vezes, sob a ótica da arquiteta, as beneficiárias femininas ficam vulneráveis em relação aos pais, irmãos e maridos, favorecidos na titulação do imóvel. 
Dos quatro processos para a obtenção de uma moradia (compra, herança, programas de governo e assentamento informal), a mulher é prejudicada na compra e na herança. Por outro lado, têm sido líderes em ocupações e movimentos de luta pela moradia. O governo federal tem, inclusive, reconhecido o desfavorecimento da mulher e as colocado como prioritárias em programas como o Minha Casa Minha Vida (MCMV).

Minha Casa Minha Vida contratará 170 mil unidades para baixa renda neste ano

Nos últimos anos, o governo federal apostou no Minha Casa Minha Vida (MCMV) para reduzir o déficit habitacional. "Retomamos a contratação de 170 mil unidades da Faixa 1 para 2017, para famílias com renda de até R$ 1,8 mil, e outras 470 mil operações de financiamento com recurso do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) das Faixas 1,5, 2 e 3, de renda per capita de até R$ 9 mil", conta a secretária nacional de Habitação, Henriqueta Arantes.
O programa tem barrado o aumento do déficit desde 2011, que segue estagnado em 9%. O Programa Nacional de Habitação Rural, outra aposta da União, também ajudou a conter a imigração rural-urbana.
Em fevereiro, o MCMV ganhou novos critérios, como a abertura para qualquer cidade, inclusive as pequenas, justamente para evitar que as famílias migrem para municípios de maior porte. Em junho, foi autorizada a contratação de 25.670 unidades da Faixa 1. Para este mês está agendada a liberação da construção das outras 144.330 unidades previstas para 2017. Em relação às 470 mil das outras faixas, já foram contratados 175.610 empreendimentos. A maior dificuldade para a implantação de novas moradias, atualmente, é a falta de recursos.
Uma linha complementar, anunciada em agosto, é o Cartão Reforma. Com ele, famílias com renda de até R$ 2.811,00 terão apoio financeiro federal para a compra de materiais de construção para reformar suas casas. 

Em 2040, aluguel vai superar compra de imóveis

Com o Plano Nacional de Habitação em elaboração, a Secretaria Nacional de Habitação (SNH) projeta como será a realidade até 2040. A secretária nacional de Habitação, Henriqueta Arantes, acredita que aplicativos como os utilizados para chamar motoristas podem desencadear um futuro no qual a população prefira alugar uma moradia, como já faz com carros, do que comprar e pagar permanentemente.
"Futuramente, as pessoas vão privilegiar a qualidade de vida sobre a formação de patrimônio, alugando um apartamento, em vez de comprar, para, se quiserem, por exemplo, desocupar o imóvel e viajar, não ter tantas preocupações com manutenção", pontua. 
Mirando nesse caminho, a SNH tem investido na elaboração de uma política nacional de aluguel social. O modelo de pagamento de uma ajuda de custo para alugar um imóvel já existe em diversos municípios. Em Porto Alegre, a prefeitura paga R$ 500,00 por mês a cerca de 2 mil beneficiários. A União pretende ter três tipos de subsídio, para diferentes rendas per capita. O serviço seria gerido por uma empresa privada.