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Direitos Humanos

- Publicada em 25 de Julho de 2017 às 08:42

Falta de documentos prejudica ressocialização

Posto de identificação no Central não teve êxito, lamenta Brzuska

Posto de identificação no Central não teve êxito, lamenta Brzuska


JONATHAN HECKLER/JC
O juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, recorda de uma situação que vivenciou quando ainda atuava na região das Missões. Depois de passar mais de duas décadas no sistema prisional, um homem encerrou sua pena e deixou o Presídio Regional de Santo Ângelo, sem qualquer vínculo na cidade e nenhum documento de identificação. "Ele não tinha nem certidão de nascimento, e queria trabalhar", lembra Brzuska. O cartório onde havia sido registrado, vitimado por um incêndio, não tinha mais como fornecer uma cópia da certidão - e, sem a apresentação do documento, o órgão responsável por emitir os documentos de identificação se recusava a fazer o serviço.
O juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, recorda de uma situação que vivenciou quando ainda atuava na região das Missões. Depois de passar mais de duas décadas no sistema prisional, um homem encerrou sua pena e deixou o Presídio Regional de Santo Ângelo, sem qualquer vínculo na cidade e nenhum documento de identificação. "Ele não tinha nem certidão de nascimento, e queria trabalhar", lembra Brzuska. O cartório onde havia sido registrado, vitimado por um incêndio, não tinha mais como fornecer uma cópia da certidão - e, sem a apresentação do documento, o órgão responsável por emitir os documentos de identificação se recusava a fazer o serviço.
A solução encontrada por Brzuska foi pouco usual. Foi até o tribunal, retirou os vários volumes do processo do ex-detento e pediu para conversar com o diretor do cartório responsável pela emissão. "Mostrei os volumes para ele e falei: 'olha, o Estado do Rio Grande do Sul reconhece essa pessoa, a manteve presa por tantos anos com esse nome, a soltou com esse nome... Vocês têm que dar um documento para ela'." Diante da montanha de papéis provando que o ex-detento reintegrado à sociedade era de fato quem dizia ser, foi finalmente autorizada a confecção da carteira de trabalho.
Casos como esse exemplificam as muitas dificuldades enfrentadas pelas pessoas que saem do sistema prisional sem carteiras de identidade, de trabalho ou certidão de nascimento. Apesar de iniciativas esparsas, como mutirões em presídios e penitenciárias, o Rio Grande do Sul não tem uma política específica para tratar do problema - um empecilho que, segundo pessoas ligadas ao setor, complica muito a reinserção dessas pessoas no mercado de trabalho e na sociedade como um todo.
Embora vários detidos entrem nas prisões já sem documentos, é igualmente comum que eles se extraviem após o encaminhamento para cumprimento de pena, quando são apreendidos junto com as demais posses do preso, como relógios e celulares. "Ficam numa caixa, arquivados num depósito. Às vezes, quando é posto em liberdade, o sujeito já está em outra cidade, não sabe como fazer para recuperar ou nem sabe onde estão esses documentos. Teria que fazer um pedido para um juiz, entrar com um advogado, desarquivar processos. Acaba sendo mais prático e barato fazer um novo", explica Brzuska.
O pedido de ajuda para providenciar documentos é muito comum, diz Roberto Vucetic, assistente social da Vara de Execuções Criminais da Capital. Ele explica que a posse dessa documentação é fundamental na busca de emprego e de serviços de apoio, e sua ausência cria barreiras, às vezes intransponíveis, para a ressocialização. "A primeira coisa que se faz é encaminhar a certidão de nascimento, pois sem ela é impossível fazer os outros documentos", explica. A burocracia, porém, atrasa alguns processos: no Tudo Fácil do Centro de Porto Alegre, por exemplo, a avaliação de renda que permite a confecção gratuita de carteiras de identidade pode levar até 30 dias.
Antônio (nome fictício) é um dos inúmeros casos em que a falta da documentação mais básica quase resultou no retorno ao crime. Usuário de drogas e portador do HIV, ele viveu anos nas ruas e ficou pouco mais de um ano no Presídio Central por roubo. Integrou-se nos trabalhos disponíveis na casa prisional e decidiu que, assim que fosse libertado, ia buscar um emprego e evitar o retorno ao vício.
A falta de documentos ao sair da casa prisional, porém, dificultou seus planos. Após recaídas e a ameaça de uma nova prisão, conseguiu junto à assistência social da Vara de Execuções Criminais uma internação e os papéis necessários para buscar novos caminhos. "Estou para retirar a carteira de trabalho agora. Isso vai me dar uma perspectiva, uma expectativa de vida melhor", diz Antônio, que voltou a viver com uma tia depois de dar sinais sinceros de querer recomeçar.
Atualmente, mutirões são realizados em conjunto pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe_ e pelo Instituto Geral de Perícias (IGP), eventualmente em parceria com órgãos do Judiciário e entidades como a Associação de Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen-RS). Essas ações promovem a confecção de carteiras de identidade e a regularização dos Cadastros de Pessoa Física (CPF), além de localizar certidões de nascimento em cartórios do Estado. Outros serviços, como processos de reconhecimento de paternidade e encaminhamentos junto ao INSS, também são realizados nesses mutirões. Recentemente, ações do tipo ocorreram em Rio Grande, beneficiando 140 presos, e em Montenegro, onde 30 detentos foram atendidos. As iniciativas, porém, são geralmente disparadas por iniciativa das próprias casas prisionais, sem que exista um programa de alcance estadual nesse sentido.

Ausência de políticas públicas e de dados estatísticos são empecilhos

Na esfera federal, é desenvolvido o projeto Identidade Cidadã, em uma parceria do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça com a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR). A iniciativa, ativa desde 2014, tem foco especial nas penitenciárias femininas das capitais e em unidades de regime semiaberto, onde o detento está mais próximo de ser libertado e retornar à sociedade. Dentro das unidades da Federação, porém, iniciativas do tipo são escassas, e o sistema prisional gaúcho não foge à regra.
Segundo os dados mais recentes do Depen, nada menos que 91,33% dos presidiários brasileiros não possuem qualquer documento pessoal em seu prontuário. Determinar esse percentual no Rio Grande do Sul, porém, é uma tarefa mais difícil. Procurados pela reportagem do Jornal do Comércio, tanto a Susepe quanto o IGP alegaram a não existência de levantamentos disponíveis a esse respeito.
Iniciado em 2012, um projeto da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) buscava estabelecer um posto de identificação dentro do Presídio Central de Porto Alegre, permitindo que o detento fizesse os documentos e os retirasse no momento da soltura ou da progressão de êxito. "Mas não tivemos êxito", lamenta o juiz Sidinei Brzuska, que na época era diretor do Departamento de Direitos Humanos da entidade.
Segundo ele, haveria demanda não apenas para os próprios apenados, mas para os familiares e amigos que circulam pelo local nos dias de visita. Porém, limitações na disponibilidade de equipamentos e pessoal fizeram com que a ideia não avançasse.
"Na época, levando em conta essas dificuldades, se entendeu que não seria conveniente, que seria uma priorização de presos em detrimento do cidadão comum", explica Brzuska. Uma nova tentativa, com "outro viés", não está descartada a médio prazo, completa o juiz.