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Cinema

- Publicada em 03 de Julho de 2016 às 16:03

As chaves da casa

Não é apenas o diretor brasileiro Walter Salles que considera o chinês Jia Zhang-Ke um dos maiores realizadores do cinema da atualidade. O cineasta de Central do Brasil admira tanto o autor de As montanhas se separam que, no ano de 2014, realizou um documentário sobre ele. Este trabalho, que tem o título de Um homem de Fenyang, não é apenas uma grande entrevista com o cineasta, pois também conta com trechos de seus filmes, além de se constituir em relato sobre dificuldades encontradas pelos cineastas empenhados em colocar na tela aspectos reveladores da China atual, essa potência mundial na qual fundamentos do capitalismo são mesclados a um processo no qual a atividade econômica é dirigida pelo regime de partido único. O filme anterior de Zhang-Ke, o impressionante, sobretudo no primeiro episódio, Um gosto de pecado, obteve grande repercussão no exterior, mas sua circulação na China parece ter sido limitada a exibições clandestinas, embora sua realização tenha sido autorizada. O novo filme do cineasta, embora ainda claramente crítico, não tem o mesmo impacto, mas é trabalho que confirma o lugar do realizador entre os maiores. Embora narrando uma mesma história, o filme também está dividido em capítulos, cada um transcorrido em uma época. Através de seus personagens centrais, o diretor ergue um painel sobre um país, algo que só os cineastas que acreditam na força de personagens são capazes de erguer.
Não é apenas o diretor brasileiro Walter Salles que considera o chinês Jia Zhang-Ke um dos maiores realizadores do cinema da atualidade. O cineasta de Central do Brasil admira tanto o autor de As montanhas se separam que, no ano de 2014, realizou um documentário sobre ele. Este trabalho, que tem o título de Um homem de Fenyang, não é apenas uma grande entrevista com o cineasta, pois também conta com trechos de seus filmes, além de se constituir em relato sobre dificuldades encontradas pelos cineastas empenhados em colocar na tela aspectos reveladores da China atual, essa potência mundial na qual fundamentos do capitalismo são mesclados a um processo no qual a atividade econômica é dirigida pelo regime de partido único. O filme anterior de Zhang-Ke, o impressionante, sobretudo no primeiro episódio, Um gosto de pecado, obteve grande repercussão no exterior, mas sua circulação na China parece ter sido limitada a exibições clandestinas, embora sua realização tenha sido autorizada. O novo filme do cineasta, embora ainda claramente crítico, não tem o mesmo impacto, mas é trabalho que confirma o lugar do realizador entre os maiores. Embora narrando uma mesma história, o filme também está dividido em capítulos, cada um transcorrido em uma época. Através de seus personagens centrais, o diretor ergue um painel sobre um país, algo que só os cineastas que acreditam na força de personagens são capazes de erguer.
Em muitos sentidos, As montanhas se separam pode ser visto como uma espécie de filme viscontiano. Como um Luchino Visconti chinês, Zhang-Ke cria personagens cujos destinos expressam os dramas enfrentados por uma determinada sociedade. E tudo é feito através da focalização de figuras reais. Trata-se de uma expressiva lição de cinema, infelizmente não compreendida pelos que, ansiosos por repercussão, costumam esquecer o essencial. E o mais interessante no filme, realizado com uma competência fora do comum, é que o cineasta não recusa utilizar alguns elementos melodramáticos, talvez pensando em provar que certas verdades podem ser encontradas num gênero quase sempre desprezado. Iniciada em 1999 e concluída num futuro bem próximo, a narrativa cobre um tempo de transformações durante o qual o fator humano não é colocado em primeiro lugar. Eis um filme que revela alterações estruturais que transformam indivíduos em peças de uma engrenagem. A alegoria que o cineasta constrói parte de uma jovem que representa a própria China, e os dois homens, que representam os caminhos a serem seguidos e por isso propõem uma escolha. Sabemos todos o caminho escolhido e o cineasta vê em tal decisão a opção por algo que se transforma num processo alienante.
Na terceira e última parte do filme, o filho do casal, vivendo em outro país e tendo até no nome o papel que exerce no mundo, já não fala a língua do pai e para ter com ele um diálogo definitivo necessita de uma intérprete. Sem terra e sem família, o representante da nova época, distante das raízes geográficas, culturais e afetivas, se transforma num Édipo simbolicamente cego, perdido no mundo, diante de um mar cujas ondas carregam o nome da mãe distante. Para Zhang-Ke perder as raízes é se tornar uma criatura sem rumo e apoio. Mas as chaves da casa permanecem, como um tesouro oculto, que o realizador, sem permitir qualquer gênero de facilidade, sugere na bela cena final, quando a mãe-terra recupera a vitalidade do primeiro trecho do filme. Além das chaves, há outros elementos na ação que exercem papel revelador. O convite de casamento deixado na mesa e que ressurgirá em outra passagem, simbolizando o valor que a sociedade abandonou. E também o cachorro, que solto no epílogo, antes do solo de dança, faz com que o espectador seja transportado para uma cena do passado. Zhang-Ke, em outra lição, é mais um evitar rancores e ênfases demagógicas. Mas não deixa de ser contundente quando, na cena do diálogo com pai, expressa o tamanho de uma frustração, então transformada em ódio e agressividade. A arma na mão do representante dos novos tempos é a concretização de uma ameaça.
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