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Teatro

- Publicada em 23 de Maio de 2016 às 14:39

A revelação que o caranguejo nos faz

Na continuidade do XI Palco Giratório, festival que o Sesc promove em todo o Brasil, tivemos uma semana movimentada (semana passada, anterior a esta em que sai esta coluna), com destaques, entre outros, para Santa Joana dos Matadouros, original de Bertolt Brecht numa visão atualizada de Marina Vianna. No final da semana, foi a vez de Caranguejo overdrive, texto de Pedro Kososvki e direção de Marco André Nunes, para Aquela Cia. de Teatro, do Rio de Janeiro.
Na continuidade do XI Palco Giratório, festival que o Sesc promove em todo o Brasil, tivemos uma semana movimentada (semana passada, anterior a esta em que sai esta coluna), com destaques, entre outros, para Santa Joana dos Matadouros, original de Bertolt Brecht numa visão atualizada de Marina Vianna. No final da semana, foi a vez de Caranguejo overdrive, texto de Pedro Kososvki e direção de Marco André Nunes, para Aquela Cia. de Teatro, do Rio de Janeiro.
O grupo já estivera em Porto Alegre, neste mesmo festival, há dois ou três anos, com Cara de cavalo, a respeito de um bandido da favela carioca, texto e direção do mesmo dramaturgo e realizador, respectivamente. Eu havia gostado bastante daquele trabalho e tinha curiosidade sobre este, em especial por causa do enredo original apresentado, que envolve um ex-soldado brasileiro da Guerra do Paraguai que, de volta ao Rio de Janeiro, então capital do império, não se encontra mais naquela cidade que deixara para lutar. Eu pensava que seria um "tour de force" um dramaturgo conseguir juntar coisas tão díspares e, ainda mais, uma reflexão a respeito do Brasil contemporâneo.
Pois o espetáculo não desmereceu a expectativa, pelo contrário. Resolvendo um percalço de produção, que é uma lei municipal que proíbe animais vivos em espetáculos, o grupo não pode colocar no palco os caranguejos que, certamente, emprestariam maior dramaticidade à encenação. Mas substituiu-os por uns tijolos em uma gaiola, o que talvez tenha alcançado até maior impacto quanto às intenções do espetáculo. Sinteticamente, o personagem, sem nome, mas que é um descendente indígena radicado na cidade de São Sebastião, é um catador de caranguejos, ou seja, vive na mais ínfima categoria social de então (e de hoje).
Levado à força como "voluntário da pátria" para a guerra, experimenta toda a violência dos comandantes e enlouquece, sendo por isso desligado e devolvido à cidade. Ali, ele encontra uma prostitua paraguaia, trazida por um militar brasileiro que, depois de violentá-la, abandona-a à (má) sorte. Ela recebe o soldado que, gradualmente, vai se transformando num quase morto-vivo e retorna ao mangue: caçador de caranguejos, agora transformara-se em comida de caranguejos.
A síntese é esta, curiosa por si mesma, mas que diz pouco do que é o espetáculo. A primeira coisa, pois, que se deve festejar e valorizar, é o fato de o dramaturgo trabalhar permanentemente com o grupo e sua criação estar sendo gestada lado a lado cm o realizador, o autor da trilha sonora, o cenógrafo, etc. Evidentemente, isso faz com que o resultado final, fixado no texto, seja, não uma versão literária do texto, mas um registro em texto, do espetáculo como um todo, como pude constatar ao comprar e ler ambos os textos que se encontravam à venda pelo grupo.
O espetáculo, de pouco mais de hora de duração, é um experimento inesquecível. Se tivéssemos apenas o texto diante de nós, certamente ele seria um monótono e chato discurso retórico a respeito da história recente do País e do avanço da indústria imobiliária sobre a cidade. Mas é que o texto é apenas um pretexto para o espetáculo; por exemplo, em cerca de 10 minutos de cena, Carolina Virguez, que incorpora a prostitua paraguaia, faz uma história pretérita do Brasil, do II Império aos acontecimentos da posse de Temer e o impeachment de Dilma Rousseff que é, ao mesmo tempo, profundamente hilário e, sobretudo, absurdamente dramático. À medida em que o relato avança, o ritmo também dispara. Ao final, estamos todos exaustos, mas como que "iluminados": uma espécie de teofania aconteceu, na simbiose da fala da personagem com o público: somos todos, nós, brasileiros, caranguejos.
Por outro lado, a presença da banda ao vivo, o uso da lama com que um dos atores se envolve e, sobretudo, o intenso e profundo trabalho de personificação do homem-caranguejo, por Matheus Macena, fazem deste um dos trabalhos mais fantásticos apresentados pelo atual festival.
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