Entre os espetáculos produzidos localmente selecionados pelo Palco Giratório está Qual a diferença entre o charme e o funk?, texto coletivo de um grupo de jovens atores que, sob a direção de Thiago Pirajira, concretizaram um belo e criativo espetáculo.
Com pouco mais de uma hora de duração, Qual a diferença entre o charme e o funk?, já a partir do título, provoca e joga. Ao propor o rompimento das fronteiras, o grupo apresenta-se com suas ideias e sua criatividade. Coletivo formado por jovens negros que entraram na universidade (leia-se, no Departamento de Arte Dramática) graças à política de cotas do antigo governo Lula, encontraram-se e resolveram expressar sua afirmação através de um espetáculo. Se existe uma ideologia por trás do grupo, o positivo é que seus integrantes compreenderam, acertadamente, que, para fazer um bom teatro, precisavam colocar estas ideias mediadas por um conjunto de ações verdadeiramente teatrais. É assim que todo o espetáculo se compõe de iniciativas extremamente criativas, sempre inesperadas e que quebram padrões, sem se afastarem, contudo, do objetivo inicial.
O resultado é um espetáculo fragmentado, mas que, ao mesmo tempo, guarda uma certa unidade, que é a identidade negra. Como foi afirmado na noite de segunda-feira passada, durante o debate realizado após o espetáculo, cada integrante do grupo trouxe uma situação de sua própria vida, e tais situações foram sendo exploradas dramaticamente e desenvolvidas. Os aspectos mais fortes são sua capacidade de rir sobre si mesmo e de transformar em jogo cênico as situações mais dramáticas (no sentido de mal resolvidas): duas das atrizes tiveram seus pais assassinados. Outros enfrentam preconceitos por suas opções sexuais, enquanto a maioria se assume enquanto negro e pobre e, consequentemente, marginalizado socialmente. Mas ninguém chora, ninguém vitupera, ninguém discursa. Cada cena traz uma situação que é resolvida dramaticamente, e o resultado são momentos profundamente poéticos, musicalmente inesquecíveis e dramaticamente afirmativos. É por isso que o espetáculo se afirma.
A trilha sonora de João Pedro Cé, criada na medida em que o espetáculo se concretizava; os figurinos de Mari Falcão; o material cênico idealizado pelo grupo e que se sintetiza no grande tapete tecido em torno de cada uma das cenas selecionadas para o espetáculo; a iluminação sensível de Guto Greca; a orientação cênica de Celina Alcântara; tudo garante uma unidade que, em princípio, não se poderia esperar daquela colagem inicial. O espetáculo é como um quebra-cabeças, um labirinto, uma espécie de adivinhação que propõe ao espectador, constantemente, uma única questão: qual é a essência do negro (brasileiro)?
O elenco, formado por Bruno Cardoso, Bruno Fernandes, Camila Falcão, Kyky Rodrigues, Laura Lima e Silvana Rodrigues tem equilíbrio e comprometimento. Uns são excelentes atores cômicos; outros, dramáticos; e outros, ainda, bailarinos. O espetáculo todo tem ritmo, leveza, uma estética própria que nos toca e nos cativa. Raras vezes se tem assistido a um trabalho tão comprometido, ao mesmo tempo, com uma causa e, simultaneamente, com a arte teatral. Este é o segredo deste grupo. Animado, sim, por uma causa, mas consciente de que, se o grupo escolheu o teatro, é teatralmente que esta causa precisa ser apresentada e defendida. Com isso, o que poderia ser particularizado (a causa negra) se universaliza e sensibiliza a todos.
Qual a diferença entre o charme e o funk? discute, sobretudo, o preconceito que a sociedade brasileira guarda contra o negro, sua ignorância sobre tal realidade (a negritude) e seu rebaixamento enquanto subproduto cultural (o folclore). Ao propor a correção de tais comportamentos, contudo, o grupo também advoga a reconciliação social: todos os que assistimos ao espetáculo não podemos nos furtar às emoções por ele provocadas e, neste momento, irmanamo-nos com o grupo e sua causa. Nada mais eficiente do que a verdadeira arte em prol de uma causa. Bertolt Brecht teria aprovado.