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O consumo popular e sua rela��o com o consumo premium



Hilaine Yaccoub Hilaine Yaccoub
Consultora e PhD em Antropologia do Consumo pela Universidade Federal Fluminense, info@ hilaineyaccoub.com.br
Os pobres sempre compraram, compram e comprarão. Não precisa "pertencer" a uma "nova" classe social como muitos apontam para ser reconhecido como potenciais consumidores, este é o maior engano. Esse novo estrato socioeconômico não é uma classe social no sentido sociológico, ela foi criada para tratar de trabalhadores que passaram por uma mobilidade social dentro do seu mesmo grupo: os pobres emergentes.
Os pobres estão mais informados, buscam custo e benefício para potencializar seus gastos e estão vivenciando a atual crise econômica com muita desenvoltura e garra. Possuem uma memória do passado quando tudo era mais difícil e se adaptam à nova conjuntura. Eles sabem se virar, possuem o poder do encaixe, do arranjo, a disposição para continuar consumindo o que conquistaram.
No passado as camadas populares pertenciam a grandes grupos de consumidores invisíveis ao mercado. Muitos setores não os enxergavam como potenciais clientes, ou sequer valorizaram o atendimento nos pontos de venda. Seu dinheiro parecia valer menos. Errado. Esqueçam a ideia de que pobres só consomem itens básicos, até porque pensar em básico e supérfluo é completamente desnecessário. O conceito de consumo básico está ligado a ideia do que seria necessário para sobreviver, para garantir a vida. Se pensarmos assim, muitos itens (senão todos) consumidos por nós seriam fúteis. Qual a necessidade de uma obra de arte para garantir a vida? E um carro? E uma roupa? E música? Desta maneira, precisamos esquecer teorias que classificam o consumo desta maneira, isto não se aplica à realidade. Com as marcas não seria diferente. Não podemos descolar o fator utilitário e simbólico dos objetos, das coisas, dos serviços. Não comemos qualquer comida, não vamos a qualquer restaurante, não usamos qualquer roupa, e, por conseguinte, não escolhemos qualquer marca. Todas as escolhas obedecem a uma classificação própria que engloba muitas mensagens.
As marcas auxiliam esta identificação. Ao adquirir um produto de marca o consumidor está revelando uma série de significados, ele gosta do produto, confia na qualidade, esta crença ou ligação com a marca pode ter sido herdada dos pais, ou de alguém que admiram, podem ser um fator para inclusão social em um grupo de pessoas antenadas "todo mundo está usando", o que possivelmente aumentará sua adesão ao grupo e construirá sua relação social.
Quando se estuda antropologia do consumo se está atento para este tipo de nuances, precisamos entender o significado dos bens e das marcas em seu contexto, os objetos que adquirimos fazem parte da nossa cultura material, portanto é imprescindível um conhecimento mais atento aos detalhes e ao contexto onde se dão as relações de consumo. Se nos atermos a uma marca como a Guess, por exemplo, é reconhecida como uma marca premium para determinados estratos sociais e ao mesmo tempo uma marca popular para outros. Como lidar com tanta complexidade?
A teoria do consumo não pode estar apenas centrada no hedonismo e no materialismo, é preciso ir mais a fundo no campo das significações, entender qual o lugar dentro da hierarquia de desejos que a marca se faz presente, e mais, como os consumidores se organizam financeiramente para conquistá-las. É uma conquista? Será? Se compram algo possivelmente deixaram de adquirir outros bens, quais seriam eles?
Temos um desafio constante: a habilidade para entender as necessidades emocionais e os hábitos de compra dos clientes de todos os grupos sociais. É preciso mais do que nunca ir fundo na compreensão do modo de pensar, usar e viver dos clientes para criar conexões para além da venda. As marcas devem construir vínculos emocionais, e isto não é feito apenas através da propaganda.
Para muitos estudiosos o consumidor é visto como um indivíduo tão passivo que apenas compra para se encaixar em padrões sociais, em estilos de vida, e não o inverso. Os consumidores são produtores de significados, são ativos na hora de consumir e usufruir dos bens e serviços. É uma relação de mão dupla com as marcas. Os críticos apontam que o mundo moderno passou a ser visto como um circuito sem fim de signos supérfluos levando uma existência pós-moderna superficial que perdeu autenticidade e raízes. De fato é uma ótica ultrapassada e atomista.
Numa perspectiva antropológica, é bastante nítido que um aumento de renda por si só não vai determinar uma adoção mecânica a um novo estilo de vida, como parece estar embutido, em boa parte, nessa discussão sobre a "nova classe média", é um processo de construção, cria-se um repertório sobre os produtos, serviços e marcas. Dentro desse conhecimento adquirido as pessoas vão mudando sua gramática, a cultura muda, e como o consumo é uma prática cultural, muda também de tempos em tempos, assim como o entendimento do uso de uma marca.
A camada popular não era vista com esse potencial de consumo, mas consumia, só que em outras esferas de consumo. O poder aquisitivo dos mais pobres, o aumento da renda das camadas populares pode ter sido novidade, tanto que foi exaustivamente explorada pela imprensa. Porém, essa tendência já havia sido sentida por antropólogos e vinha sendo pesquisada há algum tempo - principalmente por aqueles que se inserem na teoria do consumo e têm o consumo como fenômeno de ordem sociocultural e econômica e simbólica, que implica interação, fruição, troca, distinção, entre bens e indivíduos e/ou grupos.

Publicado em 28/03/2016.