"Como uma história de crime honesta, no sentido de que faz com o leitor um jogo limpo, e de que a motivação e os mecanismos do crime são sólidos - é uma fraude. O conceito do livro, especialmente, me incomodou." Foi assim que, em carta ao colega escritor George Harmon Coxe (1901-1984), enviada em 27 de junho de 1940, Raymond Chandler (1888-1959) definiu o livro O caso dos dez negrinhos, da britânica Agatha Christie (1890-1976).
Além da falta de pudores em criticar um dos maiores ícones da literatura policial, a missiva expõe uma das características mais marcantes do autor: a busca pela coerência nas histórias que escrevia. Chandler desprezava os cronogramas, fluxogramas e cruzamentos de álibis dos clássicos do gênero. Philip Marlowe, detetive que narra e protagoniza sete de seus livros, não era cerebral como um Sherlock.
Braulio Tavares, responsável por traduzir, organizar e apresentar os livros de Chandler para a Alfaguara, diz que o autor preferia os "melodramas da pulp fiction": "No romance policial clássico, tudo acontece como numa partida de xadrez. Há uma coreografia de comportamentos a serem cumpridos pelos personagens. É como numa dança, onde só conta o desenho dos passos a serem executados, não importa quem é o dançarino".
Segundo ele, os enredos de autores como Agatha Christie, John Dickson Carr, S. S. Van Dine e outros que ele ironiza eram barrocos e de sagacidade extraordinária, mas só podiam ser bem amarrados se criminosos, suspeitos, testemunhas e investigadores se comportassem de uma maneira artificial. Para Chandler, isso era falsificar o personagem, transformá-lo em boneco.
A correspondência faz parte do apêndice do romance Adeus, minha querida, que a editora lançou no fim de janeiro. No livro, Marlowe busca a namorada de um ex-presidiário brigão. Para achar Velma, ele enfrenta uma fauna de pequenos criminosos, charlatães e mafiosos de toda sorte. Tavares explica que, junto a outros autores, Chandler "trouxe o romance policial para a rua".
"Era outro tipo de crime, outro tipo de detetive. Era o mesmo ambiente sórdido das grandes cidades dos EUA, o mesmo onde circulavam os leitores das revistas. Não tinha nada a ver com crimes nas 'casas de campo no Devonshire inglês'. Chandler recusou essa fórmula, aderiu à escola hardboiled (com mais violência) e lhe deu ressonâncias humanas sem perder o prazer do melodrama policial", resume.
Em uma série de cartas, que vão de 1939 a 1954, Chandler explica a gênese de algumas de suas obras e conversa com seus pares sobre os diversos veios do mercado literário. Espezinha críticos, editores e até desenhistas responsáveis pelas capas de suas obras. "Se o seu ilustrador tivesse se dado ao trabalho de ler apenas algumas linhas do alto da página 144 do livro, ele não teria colocado a si mesmo num papel tão ridículo, nem a mim", reclama em uma carta enviada em maio de 1951 a um executivo da Pocket Books.
"Chandler era um desses sujeitos pragmáticos, 'eu mesmo faço'. Daqueles que levantam o tapete para olhar embaixo, dos que querem saber o porquê de tudo. Tinha uma boa mente analítica, administrativa, e consta que era um funcionário admirado, em seus tempos de executivo. Sempre foi um negociador leonino, mesmo quando estava por baixo", avisa o brasileiro.
Em outro momento, faz previsões sobre a própria obra. Diz, em 1949, que Adeus, minha querida seria considerado o seu melhor livro. A janela alta, o pior. A projeção não se confirmou, já que a crítica literária considera O longo adeus, de 1953, o livro onde o autor atingiu a maturidade estilística.