Ricardo Gruner
A trajetória de Boi neon, filme de Gabriel Mascaro, no circuito de festivais fala por si só. Com estreia na quinta-feira, o longa-metragem apresenta as mudanças no Brasil através dos sonhos de um grupo de vaqueiros no Nordeste. A abordagem da equipe de produtores rendeu à obra quatro prêmios no Festival do Rio: melhor filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante. No cenário internacional, a recepção também foi calorosa: menção honrosa em Toronto, láurea especial em Veneza, melhor longa em Varsóvia e prêmio da crítica em Hamburgo.
Diretor do drama Ventos de agosto (2014) e de documentários como Um lugar ao sol (2009) e Doméstica (2012), Mascaro destaca "a vaquejada como palco alegórico", nas palavras do próprio cineasta. Vaquejada é o esporte no qual os praticantes tentam emparelhar um boi entre dois cavalos - para conduzi-los ao cal onde o animal deve ser derrubado. O ator Juliano Cazarré interpreta Iremar, o protagonista do filme, quem prepara os bois antes de soltá-los na arena - mas o que o personagem deseja mesmo é ser estilista.
Neste panorama, entra em cena também Galega (Maeve Jinkings), a motorista do caminhão que serve de casa para ela, a filha pequena e os colegas que trabalham no curral. A partir dessa família improvisada, o filme desconstrói estereótipos e aposta na sensibilidade de ações cotidianas. "Dilato noções de identidade e gênero em personagens que convivem com novas escalas de sonhos possíveis", afirma o diretor.
Para passar ao público essas transformações, Mascaro acaba com a ideia monocromática do imaginário da região. Além do boi neon que empresta sua característica inusitada ao título do longa, o longa-metragem também se vale de cores vivas - que se fazem presentes nos anseios de Iremar e da menina Cacá, por exemplo.
Curiosamente, quase todo o elenco profissional é formado por atores de fora do Nordeste - mesmo que Mascaro se sinta incomodado com artistas tentando criar uma pronúncia típica. "Meu conceito de região é diferente", aponta ele. "Não queria ninguém forçando o sotaque, mas imaginar que o Nordeste contemporâneo convive com outras variedades linguísticas." Ainda conforme o realizador, essa diversidade foi surgindo de forma orgânica em função da preparação de elenco - e do contato dos atores com pessoas das redondezas do set.
Escrito pelo próprio cineasta, o roteiro inclui também colaborações de Marcelo Gomes, Cesar Turim e Daniel Bandeira. Ao invés de reviravoltas, o texto prioriza cenas rotineiras na vida do grupo apresentado. A partir de planos longos de um viés artístico, por vezes é sugerida uma expectativa por momentos que não se concretizam. "Me interessa pensar mais nos muitos acontecimentos das pequenas coisas do que nos grandes acontecimentos das poucas coisas", afirma o diretor. "Ver potência nos pequenos gestos me parece uma leitura política urgente para o mundo em que vivemos."
Conforme Mascaro, a utilização de cenas oníricas serve para romper com a ideia de naturalismo. Se por um lado o código de registro se aproxima do olhar documental, um surrealismo estético também está presente. "Por vezes o espectador se pergunta se o boi neon existe de verdade, se os tratadores penteiam os cabelos dos cavalos", cita o realizador. "O surrealismo estético se fundiu com os excessos da cultura do espetáculo. Não saber onde termina um mundo e começa outro é o jogo de suspensão que o filme provoca", completa.
O diretor já tinha algum contato com as vaquejadas antes mesmo do desenvolvimento do título - através de amigos e primos que frequentavam os eventos. Entretanto, a ideia do produtor é se debruçar sobre universos que desconhece sempre que possível. "Tento procurar pontos de troca, me aproximar de uma sensibilidade de outro mundo que também poderia habitar o meu mundo. E aí percebemos que os mundos distantes não são mais tão distantes assim", ressalta. Integrante de uma geração de cineastas que transformou as produções de Pernambuco em papa-prêmios em festivais, ele agora se dedica a uma pesquisa sobre idosos e outra sobre evangélicos.