Michele Rolim
A obra de Walmor Corrêa recria histórias que vão de mitos populares brasileiros até os relatos dos primeiros viajantes. Ele constrói seres híbridos em suas séries de pinturas e desenhos utilizando a técnica da taxidermia. Em 1999, ano que marca profundamente sua produção, o artista rumou para a Floresta Amazônica no intuito de desenvolver um estudo aprofundado de sua fauna e flora. Foi então que surgiu a série de trabalhos intitulada Catalogações/Coleções, na qual ele criou pequenas pinturas de insetos imaginados por ele em sua morfologia, anatomia e nomenclatura.
Desde a infância, Corrêa cultiva um interesse pelo "estranho", fato que justifica o nome do livro recém-lançado O estranho assimilado, com organização da historiadora e crítica de arte Paula Ramos e textos dos autores Clarissa Diniz, Fernando Cocchiarale, Francisco Marshall, Maria de Fátima Costa, Mônica Zielinsky, Paula Ramos, Bianca Knaak, Blanca Brites, Icleia Borsa Cattani, Guy Amado e Rosângela Cherem, aliados a uma cronologia do artista.
O livro, produzido durante quatro anos, vem ao encontro da importância que o texto adquire na obra de Corrêa. "É muito mais fácil para o espectador entender a minha obra na conjugação do visual e do texto", diz. Isso porque todo seu trabalho é produzido a partir de uma pesquisa.
Metamorfoses e heterogonia, por exemplo, parte de um estudo de anotações sobre a fauna e flora brasileiras encontradas em cartas escritas pelo padre José de Anchieta (1534-1597). Nesses documentos, ele identificou espécies de pássaros inexistentes. Corrêa, então, criou seres empalhados e dioramas que atestam as descrições do século XVI, com pássaros que se alimentam de orvalho e outros que são ratos com asas.
Já em outro trabalho, o artista parte da leitura dos registros do naturalista Herman Von Ihering (1850-1930), que participou de uma expedição para catalogar espécies da fauna brasileira. Neste relato, o naturalista registra a presença de uma ave - no caso, uma andorinha - em vegetação do Rio Grande do Sul. Ele não sabia se o animal estava ali temporariamente, para procriação, ou se para hibernar. O artista comentou o fato a um amigo biólogo, que relatou que ave alguma hiberna. Então, Corrêa apresentou cinco falhas no trabalho do Herman Von Ihering, dando origem à Biblioteca dos enganos.
"O que estava nos padrões corretos da sociedade nunca me interessava. Gostava daqueles que davam a vírgula da história - é o que eu digo até hoje: sou um artista que busca a vírgula, onde está o equívoco, o deslize - se o cara é um estudioso, procuro onde ele se equivocou", comenta Corrêa.
Um dos seus trabalhos mais conhecidos são as pinturas da série Unheimlich, na qual dissecou cinco seres do imaginário popular brasileiro: a Ondina, o Ipupiara, o Curupira, o Capelobo e a Cachorra da Palmeira. As pinturas são acompanhadas de um texto que "ampara" a existência científica dos seres. O texto foi feito a partir de entrevistas com médicos e especialistas.
A invenção das criaturas se torna quase como uma armadilha visual para o espectador que, ao primeiro momento, acha belo, mas, posteriormente, sente um estranhamento. Como existe ainda um imaginário da fauna brasileira, Corrêa conta que é comum estrangeiros perguntarem se, de fato, esses seres habitam o Brasil. "O legal do trabalho e da arte é que ela converse com o espectador e faça ele rever suas certezas - a boa arte, na minha opinião, começa pelo teu estômago, e não pelo coração", afirma.
Corrêa é um dos artistas brasileiros de maior projeção nacional e internacional. Discutindo os limites entre arte e ciência, tem participado de mostras nacionais e internacionais, desde o início dos anos 2000. Em 2004, com sala especial, participou da XXVI Bienal de São Paulo; em 2006, da mostra Cryptozoology, nos Estados Unidos, na qual ele participou ao lado de artistas como John Fontcuberta e Mark Dion; 2008, de Os trópicos, passando por cidades do Brasil, além de Berlim, na Alemanha, e Cidade do Cabo, na África.
O artista está em pleno desenvolvimento do projeto Deslocamentos, a partir do trabalho iniciado em 2014, em Washington, com bolsa da Fundação Smithsonian. Nesse projeto, pesquisando os arquivos do ornitólogo norte-americano William Belton (1914-2009), que desenvolveu parte importante de suas investigações no Rio Grande do Sul, Corrêa identificou uma espécie de pássaro, a Sporophila beltoni, para a qual vai reconstruir a trajetória e dar-lhe identidade.